03 maio 2007

Querer não é poder

O cartaz largo, à beira da estrada, anuncia com estrondo: “Compre o que quiser. Pague quando puder.” acrescentando que, para concretizar este passo de magia, basta pedir o cartão x. Simples...mas desastroso. Esta é, nos nossos dias, uma das maiores pragas da sociedade portuguesa, que se desdobra dos electrodomésticos às viagens, da casa ao carro, do computador à conta do supermercado.

Apesar de rimar, querer nem sempre é poder e, no consumo, confundir as duas coisas é terrível. Graças a uma enorme indústria de crédito ao consumo, dispondo de um marketing agressivo, multiplicaram-se as ofertas que, ilusoriamente, tornam possíveis opções que estariam fora das opções familiares. Tudo parece fácil. Basta pedir. O problema vem depois, quando se percebe que o passo foi maior do que as pernas.

Hoje, em vez de poupar, para eventualmente um dia gastar, gastamos a contar com o que - eventualmente - vamos ganhar. A diferença é óbvia e fruto da mentalidade do tempo. Atrás de facilidades, compramos problemas. Actualmente, milhares de famílias sentem na pele as suas opções insensatas do endividamento que fizeram. Os juros afundam-nas e, quantas vezes, sofrem a humilhação de verem os bens que adquiriram serem penhorados ou retomados pelo credor. Segundo o Banco de Portugal, o endividamento familiar corresponde a 84% do Produto Interno Bruto e, em 2006, o crédito concedido aumentou 11,5%, numa tendência persistente desde os anos 90. Outros dados apontam para que cada família tem, em média, seis créditos (não só na área do consumo, mas também no crédito à habitação e automóvel), e o seu endividamento corresponde a 120% do rendimento. Ou seja deve mais do que a totalidade do seu rendimento.

É urgente inverter este ciclo. Desde logo, pelo lado do consumidor. Quem entra no jogo do crédito fácil deve perceber os riscos que está a correr. Sabendo que quase nunca se destina a bens essenciais de consumo – longe vão os tempos do “fiado” na mercearia do bairro para poder dar jantar à família – as famílias têm de saber dizer não ao acessório que está para além das suas possibilidades efectivas. A solução seria simples e decorre do bom-senso. Primeiro é preciso poder, para depois concretizar o querer do consumo. Mas para isso é preciso não querer parecer mais do que se tem, nem ter mais do que se pode. Bem sei que são valores fora de moda. Mas ainda são os mais seguros e mais sólidos. Evitam grandes dissabores e dão particular sabor ao que se consegue. Por outro lado, é fundamental que as empresas que intervêm neste negócio sejam muito mais exigentes consigo próprias, na regulação ética e deontológica da sua actividade. O que equivale a ser muito mais selectivo na atribuição de crédito ao consumo e incomparavelmente mais sério na propaganda difundida.

Bem maior

Hoje, por cá, festeja-se a liberdade. A tal que só se dá por ela quando falta. Como o ar que respiramos. Banalizada, por vezes, através de um uso corriqueiro, outras tantas ocasiões confundida com aparências e simulações, torna-se moeda de pouco valor. Até pode parecer dispensável. Mas não é.

Não tenhamos dúvidas: se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, e concordando por uma vez com Sartre, o Homem nasceu para ser livre. Mas esse destino não é um simples equivalente da falta de constrangimentos ou da simples ausência de proibições. Nem um “ai que prazer / não cumprir um dever / ter um livro para ler / e não o fazer”. Ou o tudo poder fazer, sem limite, nem critério. Ser livre é ser escravo da consciência e senhor da vontade. E é pois entre consciência e vontade que devem ser geradas as nossas escolhas, expressões concretas da nossa liberdade.

Mas para ser livre é preciso ter escolhas possíveis. O problema é que, para muitos, as opções disponíveis são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, por vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas, graças a uma formação deficiente da sua consciência. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já antes fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade. São milhões os que ainda não são livres e, provavelmente, nunca o virão a ser. Vivem enclausurados pelas grades da pobreza, das dependências, da exclusão social e da desesperança.

Outros há que podendo ser livres, prefeririam não ter esse fardo da escolha. Passavam bem sem a liberdade. Têm um certo horror à responsabilidade de escolher. Sonham que alguém o fizesse por eles, deixando-os numa confortável posição de seguidores ou de detractores. Parecendo que não, esta posição tem o seu encanto. É ver o jogo sentado, em vez de arriscar a jogar. É ficar num lugar muito seguro. Cinzento, mas cómodo. Permite contornar a angústia da escolha e o peso das suas consequências. A procura de um Pai autoritário, que ciclicamente observamos, radica aqui.

Mas, na verdade, para quem quer assumir plenamente a sua humanidade e viver uma vida a cores, amar a liberdade é um desígnio irrecusável. É o que nos separa dos rastejantes. Mas não nos chega uma liberdade qualquer. Para quem quer viver a liberdade a sério, o grande desafio é, em cada escolha, não só escolher o bem em vez do mal. É querer ir mais longe. A liberdade mais perfeita é a que é capaz de, entre dois bens, escolher o bem maior. O mais universal e o mais urgente. Esta deveria ser a nossa maior ambição ao ser livres. Mas isto não é nada fácil.


Correio da Manhã, 25/4/2007