14 junho 2008

Contra o medo

Nas últimas semanas, no quadro da minha intervenção cívica e política, tenho percorrido o País, para falar de política da esperança. De como é possível ultrapassar os inúmeros obstáculos que temos pela frente, se juntos nisso nos empenharmos, dando o melhor de nós próprios. Se arregaçarmos as mangas e deitarmos mãos à obra. É óbvio que esta tarefa é particularmente difícil nestes dias, em que se acumulam as más notícias e as nuvens negras sobre o horizonte se vão acumulando. Mas, mais do que nunca, é fundamental. Sem esperança, afundamo-nos.

Por entre a riqueza desta experiência, onde nos vamos cruzando com um país real cheio de potencialidades, mas também amarrado por vários bloqueios, vou anotando muitas esperanças e algumas preocupações. Entre estas, destaca-se o medo omnipresente. Sim, o medo. Nunca imaginei que trinta e quatro anos depois da festa da liberdade, tanta gente vivesse tolhida pelo medo. Medo de tudo e medo de nada. Do chefe, do presidente da câmara, do Estado, do SIS, da ASAE, do fisco, enfim, de tudo o que mexe. Medo de represálias, de vinganças, de negócios perdidos, de oportunidades goradas. Medo de falar ao telefone e ser escutado, medo de servir alheiras e ser multado. Medo atrás de medo. Este é um medo que nos paralisa; um medo que nos descaracteriza. Curiosamente, esta expressão é inversamente proporcional à dimensão do sítio – quanto mais pequeno o lugar, mais evidente o medo – e directamente proporcional à formação dos visados – quanto mais diferenciada a pessoa, maior o medo.

Ficou famoso o discurso, há mais de um ano, na sessão comemorativa do 25 de Abril, que o Deputado Paulo Castro Rangel proferiu na Assembleia da República, clamando contra a claustrofobia democrática. Hoje, concordo mais com a sua preocupação, do que nessa altura. É urgente reagir contra o medo. Mas a primeira e decisiva reacção passa, não tanto por acusar este ou aquele protagonista, mas por termos consciência de que quem não reage contra o medo, acaba seu prisioneiro. Mais: alimenta-o e vai aumentado o seu domínio, até que o medo se torna senhor absoluto. Ao contrário, quem reage contra o medo, sacode-o e fá-lo recuar. Quase sempre, quem gera medo é cobarde quando enfrentado. Por isso, os portugueses precisam de reencontrar coragem para levantar a cabeça e não se deixarem atemorizar. A nossa liberdade – política, religiosa, cultural - não pode ser fechada numa caixa, que ainda que tenha paredes invisíveis, não deixa de ser profundamente claustrofóbica.

Fogo cerrado

Portugal tem, é sabido, uma sociedade civil frágil. Fruto de séculos de centralismo estatal, de uma cultura de dependência dos poderes públicos e de uma aversão ao empreendedorismo social, estamos muito longe do nível desejável de pujança das instituições da sociedade civil. O terceiro sector – o que não é público, nem privado com fins lucrativos – tem que se reforçar em Portugal. Sabemos, a propósito, que os países mais desenvolvidos o são, não só pela competitividade das suas economias, mas pela força das suas comunidades e pelo empenho cívico das suas populações. É para esse modelo que devemos mover-nos: uma sociedade civil cada vez mais forte.

Ainda assim, em Portugal, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), incluindo as Misericórdias, representam mais de quatro mil instituições, com 270.000 funcionários e mobilizam 4,2% do PIB. Garantem o essencial dos serviços sociais de apoio à infância e à terceira idade. Constituem uma realidade essencial na sociedade portuguesa. Por isso, todos os esforços para as reforçar são fundamentais e todos os ataques a este tecido social constituem um erro crasso, quer porque não tendo nós uma sociedade civil forte, atacar o que temos é um disparate, quer porque damos um sinal errado, optando pela intervenção do Estado em vez de preferir o Terceiro Sector.

Infelizmente, os sinais mais recentes são preocupantes. Numa visão estratégica errada, as IPSS têm vindo a estar sob fogo cerrado. Ora é a ameaça aos ATL para crianças que durante anos estas instituições desenvolveram e que ficaram em risco pela iniciativa do Ministério da Educação ao “estatizar” a escola a tempo inteiro; ora é a ameaça da ASAE com a sua lógica insensata e a desadequada interpretação fundamentalista das leis comunitárias que cai em cima das IPSS; ora é o Ministério da Saúde que ignora o contributo que as Misericórdias poderiam dar para a resolução das listas de espera em Oftalmologia. São evidências excessivas, para considerar que se trata de coincidências. Há um ataque cerrado em curso.

Dessa forma se compreende como reacção que se assista ao agendamento de várias formas de protesto, entre as quais uma greve – inédita – nos ATL e uma manifestação em Lisboa. A sua causa merece todo o nosso apoio. Matar, ou colocar em risco sério, as IPSS constitui um erro político com danos efectivos para o País. É necessário inverter o caminho.

Natureza humana

Num tempo conturbado, atravessado por novas erupções do denominado “choque de civilizações”, onde se redesenha o mundo em função de previsíveis colisões de culturas e religiões, constitui um desafio regressar a outros passados, tão diferentes na forma, quanto iguais na essência. Terão os choques de civilizações no passado acontecido pelo conflito gerado pelas diferenças?

Nesse olhar pela História, à procura de outros “choques de civilizações”, surge como momento referencial o chamado “século cristão do Japão”, especialmente no seu epílogo, já em pleno séc. XVII. Camões, sintetizava assim esse destino então abraçado: “É Japão onde nasce a prata fina / que será ilustrada com a Lei divina”. Na abertura aos “bárbaros do sul”, esses portugueses intrépidos da era dos Descobrimentos, o Japão feudal descobriu, acolheu e, finalmente, rejeitou violentamente uma ponte entre dois mundos quase opostos que, por décadas, se interligaram.

Luís de Fróis, na época, ilustrava sistematicamente 609 exemplos de diferenças – “nós usamos do preto por dó; e os japões do branco” - no comportamento dos homens, das mulheres ou das crianças, das armas e da guerra, da arte e da alimentação, da religião e da literatura. Mais do que nos antípodas do globo, coloca a Europa e o Japão nos extremos opostos das tradições e dos costumes. E, no entanto, estas duas civilizações conviveram pacificamente ao longo de quase um século.

O momento crítico de tensão e de desencontro aconteceu quando se colocou a questão do poder. Quando os japoneses tiveram a notícia do que havia acontecido nas Filipinas, onde também tinham chegado os europeus. Aí, depois de uma primeira entrada pacífica pela religião e pelo comércio, os estrangeiros vieram a conquistar o poder, pela força, dominando os autóctones. Temendo que o mesmo lhes viesse a acontecer, os japoneses decidiram expulsar violentamente os portugueses e aquilo que eles representavam: o cristianismo.

Ora, o que tem isto a ver com os nossos dias? É simples. Os nossos conflitos nascem porque somos todos iguais. Porque partilhamos sentimentos como a ambição, a conquista, o domínio, a glória, a transformação do outro em alguém igual a nós. É próprio da natureza humana. Por isso não nos deixemos iludir por discursos que colocam nas diferenças a razão de ser dos conflitos de civilizações. O problema é efectivamente... a semelhança.

O nó górdio

A discussão em torno das alterações às relações laborais está na ordem do dia. As propostas avançadas pelo Governo e em debate na concertação social vão no bom caminho, mas não tocam ainda numa questão essencial.

Portugal enfrenta um enorme desafio de adequar a sua economia à dinâmica da competição global. Nessa dinâmica, se, por um lado, não deve abdicar de um Estado social e da protecção do emprego, também não pode ignorar que para sobreviver não pode manter a situação existente, repartida entre emprego eterno ou precariedade absoluta. Este é um nó górdio.

Em grande medida, temos em Portugal uma situação extremada onde parte dos trabalhadores estão completamente vulneráveis, num precariedade total, seja através dos falsos recibos verdes, seja mesmo pelo trabalho clandestino, enquanto outra parte tem tais garantias que jamais poderá ser dispensado do seu emprego. Uns têm de menos o que outros têm de mais.

Quanto aos precários, cuja revolta se começa a evidenciar, a inexistência de garantias mínimas, seja na doença ou no desemprego, bem como a total e permanente vulnerabilidade, torna a sua vida numa angústia permanente. O futuro fica suspenso e os direitos são uma miragem. Em relação aos outros, os “efectivos”, nem que caia “o Carmo e a Trindade” alguma coisa acontecerá. Ironicamente, ao mesmo tempo que se quer afirmar que o casamento não é eterno, tornando o divórcio fácil e acessível, aceita-se manter o princípio da eternidade de um contrato de trabalho. Dá que pensar.

A bem da solidariedade entre trabalhadores – para que os que têm de mais possam ceder algo aos que têm de menos - e da competitividade das nossas empresas, deveríamos estar disponíveis para alterar esta realidade, equilibrando direitos e deveres, segurança e risco. Deveríamos introduzir nas relações laborais, um combate simultâneo à precariedade e à rigidez no emprego.

Ganharíamos todos se ninguém estivesse isento de poder ser dispensado do seu emprego, com uma justa indemnização que poderia corresponder, por exemplo, a três ou quatro salários por cada ano de trabalho. Essa indemnização corresponderia a um “seguro de desemprego” que permitiria “respirar” enquanto se procura novo emprego. Em caso de insucesso recorrente no encontro de um novo emprego, então continuariam a funcionar os mecanismos de solidariedade social, através da intervenção do Estado social. Desta forma, convivendo com a possibilidade de dispensa com indemnização, os empregadores teriam muito menos hesitações na contratação e, naturalmente, existiria muito mais emprego formal. Por outro lado, para os trabalhadores, o quadro do um mercado de emprego dinâmico, com natural geração de mais oportunidades, constituiria sempre uma vantagem. Em simultâneo, haveria condições para que, desde o primeiro dia, todos os trabalhadores tivessem um contrato de trabalho sem termo certo, riscando do mapa os formatos de trabalho sem direitos sociais.