Com o calendário a mostrar Dezembro, começam a multiplicar-se as árvores de Natal. Dentro e fora de portas, em versões de plástico ou ainda com o tradicional pequeno pinheiro, vão enfeitando os nossos dias. Nada contra. Sinal de festa que faz falta à nossa vida, sobretudo se tiver algum sentido além de fugazes e vazios apelos consumistas.
No Porto, a este propósito, acontece por estes dias um contraste cheio de significado. Na rotunda da Boavista, transplantada da experiência nos anos anteriores em Lisboa, está uma árvore de Natal gigante. Do alto dos seus 76 metros e com o brilho de três milhões de lâmpadas, ilumina toda a rotunda. São 280 toneladas de artefactos sofisticados para comemorar comercialmente a quadra natalícia. Muitos euros a terão feito crescer, talvez para lembrar que... é tempo de comprar prendas para pôr na árvore de Natal caseira.
Mas, longe do centro, no Bairro do Cerco, tido como território difícil, está uma outra árvore. De Natal, também. Com muito mais significado, porém. Fora do bulício das compras, entre os que não tiveram lugar na hospedaria, lá está aquela árvore especial.
Um grande plátano, enraizado há décadas no meio do bairro, foi transformado numa árvore de Natal que é uma metáfora notável. No topo desta outra árvore está uma estrela de Natal. Feita pelas pessoas do bairro e soldada por um antigo metalúrgico. Foi colocada como expoente desta dinâmica. Como estrela que aponta um caminho. Mais abaixo, nos seus ramos repousam não só as luzes que um morador permitiu que fossem ligadas a uma tomada eléctrica da sua casa. Penduradas nos seus braços estão também faixas coloridas. Nelas estão inscritas frases que são os desejos de Natal das crianças para o seu bairro. E também o que cada uma destas crianças pensa que pode fazer para que esse desejo se concretize. Nem mais, nem menos.
Não poderia haver melhor retrato de Natal. Entre os mais excluídos, que ficam à margem, também é possível fazer brilhar a esperança. Com a participação de todos e para todos. Numa lógica animada pelas suas crianças, nas quais os desejos não são egoístas nem se referem a brinquedos ou gulodices. Pedem o que mais falta lhes faz e comprometem-se a não esperar que a concretização desse desejo caia do céu. Assumem fazer algo para que o desejo se torne realidade. Não que acreditem que por estes dias acabe instantaneamente o tráfico de droga, a violência e a pobreza que fazem sofrer o bairro. Mas porque sabem que, apesar de tudo, nas suas mãos está a capacidade de mudar alguma coisa.
Estão de parabéns Márcia Andrade e a equipa do projecto Pular a Cerca, do programa Escolhas, que, com o suporte do consórcio de instituições que promovem o projecto, deram um exemplo. Para todos estes protagonistas, o Natal já chegou. Como eles, muito podemos fazer para multiplicar a esperança nesta época.
09 dezembro 2007
04 dezembro 2007
Heróis anónimos
Sempre gostei das grandes biografias, das histórias de homens e mulheres notáveis, que se agigantaram em momentos críticos da História. Todos nós crescemos com os seus nomes à cabeceira dos nossos sonhos e ambicionámos ser parecidos. Mas, com a idade, vamo-nos acomodando ao possível.
O grande heroísmo com que sonhámos vai ficando progressivamente mais longe. Cada vez mais longe. Só que surge então a sabedoria de ver, à nossa volta, os heróis anónimos. Os que não têm direito a livro biográfico, nem a nome próprio nos escaparates da fama. Mas que representam um exemplo para todos nós. E que são alguns de vós.
Passo os olhos por eles. Descubro as mães que preparam os seus filhos ainda a manhã não tem luz, os deixam no infantário, partindo para o seu trabalho em transportes públicos a abarrotar. A jornada tem de ser cumprida como se nada mais fizessem e, no regresso, de novo a correria. Apanhar os miúdos, fazer compras, chegar a casa, dar jantar e deitar os miúdos e... preparar um novo dia que será igual. Perante elas me curvo, heroínas anónimas do nosso tempo.
Olho depois os pais que se desdobram numa luta pelo emprego que não está fácil, inventando aqui e além alternativas para compor um magro orçamento familiar. Admiro-os no esforço de se adaptarem aos novos tempos que também deles exigem a co-responsabilidade nas tarefas domésticas e no cuidar dos filhos. Percebo as suas angústias na relação com um mundo diferente dos seus filhos e com a incerteza de estarem à altura das responsabilidades. Perante eles me curvo, heróis anónimos do quotidiano.
Olho também para aqueles miúdos que, contra tudo e contra todos, resistem a condições adversas e não descambam. Que estudam quando o esperado era abandonar. Que alcançam sucesso, anulando o destino traçado de fracasso anunciado. Também perante estes me curvo, meus pequenos heróis desconhecidos.
Mas há mais. Muito mais. O pescador, que entre o frio da madrugada e o vento que faz baloiçar a sua casca de noz, insiste em procurar tirar do mar o seu pão de cada dia, com a salmoura a queimar as mãos e a dúvida a pairar sobre o amanhã. O condutor do comboio que não pode ter tempo para as suas divagações e se verga com a responsabilidade de milhares de vidas nas suas costas. O homem que recolhe o lixo malcheiroso e pesado que multiplicamos todos os dias, com quem nos cruzamos só em noites que regressamos tarde. A enfermeira que vela pelos seus doentes, no silêncio nocturno de um qualquer hospital, à disposição de um pedido de ajuda. O polícia que é, mais uma vez, chamado para acudir quem precisa, não sabendo que perigos esconde a escuridão... e tantos outros.
São heróis e heroínas sem notoriedade pública, mas porventura com muito mais valia humana do que alguns nomes consagrados. Anónimos que vão substituindo, na minha cabeceira, as biografias dos meus heróis de adolescente.
O grande heroísmo com que sonhámos vai ficando progressivamente mais longe. Cada vez mais longe. Só que surge então a sabedoria de ver, à nossa volta, os heróis anónimos. Os que não têm direito a livro biográfico, nem a nome próprio nos escaparates da fama. Mas que representam um exemplo para todos nós. E que são alguns de vós.
Passo os olhos por eles. Descubro as mães que preparam os seus filhos ainda a manhã não tem luz, os deixam no infantário, partindo para o seu trabalho em transportes públicos a abarrotar. A jornada tem de ser cumprida como se nada mais fizessem e, no regresso, de novo a correria. Apanhar os miúdos, fazer compras, chegar a casa, dar jantar e deitar os miúdos e... preparar um novo dia que será igual. Perante elas me curvo, heroínas anónimas do nosso tempo.
Olho depois os pais que se desdobram numa luta pelo emprego que não está fácil, inventando aqui e além alternativas para compor um magro orçamento familiar. Admiro-os no esforço de se adaptarem aos novos tempos que também deles exigem a co-responsabilidade nas tarefas domésticas e no cuidar dos filhos. Percebo as suas angústias na relação com um mundo diferente dos seus filhos e com a incerteza de estarem à altura das responsabilidades. Perante eles me curvo, heróis anónimos do quotidiano.
Olho também para aqueles miúdos que, contra tudo e contra todos, resistem a condições adversas e não descambam. Que estudam quando o esperado era abandonar. Que alcançam sucesso, anulando o destino traçado de fracasso anunciado. Também perante estes me curvo, meus pequenos heróis desconhecidos.
Mas há mais. Muito mais. O pescador, que entre o frio da madrugada e o vento que faz baloiçar a sua casca de noz, insiste em procurar tirar do mar o seu pão de cada dia, com a salmoura a queimar as mãos e a dúvida a pairar sobre o amanhã. O condutor do comboio que não pode ter tempo para as suas divagações e se verga com a responsabilidade de milhares de vidas nas suas costas. O homem que recolhe o lixo malcheiroso e pesado que multiplicamos todos os dias, com quem nos cruzamos só em noites que regressamos tarde. A enfermeira que vela pelos seus doentes, no silêncio nocturno de um qualquer hospital, à disposição de um pedido de ajuda. O polícia que é, mais uma vez, chamado para acudir quem precisa, não sabendo que perigos esconde a escuridão... e tantos outros.
São heróis e heroínas sem notoriedade pública, mas porventura com muito mais valia humana do que alguns nomes consagrados. Anónimos que vão substituindo, na minha cabeceira, as biografias dos meus heróis de adolescente.
Dignidade e Liberdade
Quase no final do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos, é útil regressar aos fundamentos, à razão de ser, ao ‘porquê’ e ‘para quê’ de uma causa que nunca se esgotará.
A afirmação da igualdade de oportunidades não resulta senão da assunção clara e inequívoca da igual dignidade de todos os seres humanos. É aqui que tudo radica: nada nos distingue na plenitude da nossa dignidade. Cada pessoa é uma obra única, uma sinfonia perfeita, uma pérola irrepetível. Para lá de qualquer aparência, de diferença formal ou de origem distinta, cada pessoa é uma humanidade individual, no dizer de Mia Couto. Essa visão humanista coloca obrigatoriamente a Pessoa no centro das políticas e reconhece-a como princípio e fim de tudo. E sendo séria esta opção, deve ter consequências. A todos nós é exigido o esforço, quer numa expressão individual, quer na esfera colectiva, de fazer respeitar a dignidade humana, de todos e de cada um dos que nos rodeiam. E esse respeito passa obrigatoriamente pela criação de iguais oportunidades para todos.
Não podemos pactuar com campos inclinados, em que para uns o jogo é sempre feito contra a gravidade enquanto para outros se desenrola com a inclinação do campo a seu favor. Não podemos aceitar que na corrida da vida, na linha de partida, uns tenham tudo para vencer e outros mal consigam dar os primeiros passos. Conviver pacificamente com esta realidade injusta como de um fado inevitável se tratasse é ignorar o respeito pela dignidade humana. É desistir de parte da Humanidade.
Precisamos, por isso, de garantir a igualdade de oportunidades, para que cada homem e cada mulher possam ser verdadeiramente livres. E, assim, um ser único e diferente. Para que o seu destino seja fruto da sua vontade, do seu trabalho e das suas escolhas e não se encontre previamente escrito pelo contexto em que nasce. A liberdade e autodeterminação de cada pessoa deverão, assim, ser os únicos factores diferenciadores no trajecto de uma vida.
Sabemos ser esta uma utopia antiga. Sempre presente e sempre inatingível. Mas como avançaria o Mundo sem a ousadia de querer evoluir em direcção à perfeição dos ideais? Renovamos, hoje e sempre, a certeza de que só vale a pena viver em busca de um mundo mais justo, com lugar para todos, no respeito pela sua liberdade e na inclusão das suas diferenças. Na certeza absoluta da inviolabilidade da dignidade humana e na convicção de que esta só é respeitada se a todos forem concedidas oportunidades iguais.
A afirmação da igualdade de oportunidades não resulta senão da assunção clara e inequívoca da igual dignidade de todos os seres humanos. É aqui que tudo radica: nada nos distingue na plenitude da nossa dignidade. Cada pessoa é uma obra única, uma sinfonia perfeita, uma pérola irrepetível. Para lá de qualquer aparência, de diferença formal ou de origem distinta, cada pessoa é uma humanidade individual, no dizer de Mia Couto. Essa visão humanista coloca obrigatoriamente a Pessoa no centro das políticas e reconhece-a como princípio e fim de tudo. E sendo séria esta opção, deve ter consequências. A todos nós é exigido o esforço, quer numa expressão individual, quer na esfera colectiva, de fazer respeitar a dignidade humana, de todos e de cada um dos que nos rodeiam. E esse respeito passa obrigatoriamente pela criação de iguais oportunidades para todos.
Não podemos pactuar com campos inclinados, em que para uns o jogo é sempre feito contra a gravidade enquanto para outros se desenrola com a inclinação do campo a seu favor. Não podemos aceitar que na corrida da vida, na linha de partida, uns tenham tudo para vencer e outros mal consigam dar os primeiros passos. Conviver pacificamente com esta realidade injusta como de um fado inevitável se tratasse é ignorar o respeito pela dignidade humana. É desistir de parte da Humanidade.
Precisamos, por isso, de garantir a igualdade de oportunidades, para que cada homem e cada mulher possam ser verdadeiramente livres. E, assim, um ser único e diferente. Para que o seu destino seja fruto da sua vontade, do seu trabalho e das suas escolhas e não se encontre previamente escrito pelo contexto em que nasce. A liberdade e autodeterminação de cada pessoa deverão, assim, ser os únicos factores diferenciadores no trajecto de uma vida.
Sabemos ser esta uma utopia antiga. Sempre presente e sempre inatingível. Mas como avançaria o Mundo sem a ousadia de querer evoluir em direcção à perfeição dos ideais? Renovamos, hoje e sempre, a certeza de que só vale a pena viver em busca de um mundo mais justo, com lugar para todos, no respeito pela sua liberdade e na inclusão das suas diferenças. Na certeza absoluta da inviolabilidade da dignidade humana e na convicção de que esta só é respeitada se a todos forem concedidas oportunidades iguais.
Pontífices
E num tempo complexo e cheio de contradições, onde o conflito facilmente degenera em agressão e violência – pelo menos, verbal –, e num quadro social marcado pelo pluralismo, pela diversidade e pela fractura, coloca-se a questão de como gerir conflitos e diferenças.
Em registo democrático e de desejável igualdade entre todos os cidadãos, a definição de um caminho comum que a todos mobilize e que a ninguém desrespeite, que parta das diferenças para chegar às convergências, constitui um dos maiores desafios.
Este objectivo torna-se tanto mais difícil quanto cada um de nós tende a absolutizar a sua posição e a ter dificuldade de ver o Mundo pelos olhos do Outro. Limitamo-nos a olhar pela nossa janela e só admitimos como verdade aquilo que daí se vê. Ora, a consequência é evidente. Ficam a faltar pontes de contacto, escasseia o entendimento e cresce a hostilidade. Ficamos encerrados na Babel do nosso desentendimento. E tal como na metáfora dessa Torre, a obra pára e fica incompleta.
O nosso tempo precisa desesperadamente de uma cultura de pontes. De quem una, em vez de separar. De quem ouça, para além de falar. De quem faça, em vez de lamentar. Há muitas margens para ligar, que sem pontes nunca se encontrarão. Por outro lado, todos os dias surgem novas ameaças à destruição de pontes que existem. Multiplicam-se as margens sem paz. É impressionante que, em tempo de guerra, um dos objectivos mais atingidos sejam as pontes. Simbolicamente, na sua destruição, está a imagem dessa maldição e das suas consequências. Assim, uma das missões mais urgentes, para quem quer lutar por um Mundo melhor, é ser pontífice.
Pode soar estranho, porque estamos habituados a ouvir esta expressão como um dos títulos do Papa – Sumo Pontífice – mas a utilização desta designação não é exclusiva, nem está associada obrigatoriamente a questões religiosas.
A expressão Pontífice provém do latim, ‘pontifex’ formado por ‘pons’ e ‘facere’ que significa ‘fazer ponte’. E se ao Papa, na tradição da Igreja Católica, está incumbida a função de fazer a ponte entre Homens e Deus, por cada um de nós pode ser assumida a missão de fazer pontes na nossa sociedade. Entre as pessoas e as suas diferenças.
Para tal notável tarefa precisamos de reconhecer a existência de margens e ter a intenção firme de as ligar. Respeitando-as na sua essência, mas afirmando que não se esgotam em si mesmo. Que só ganham sentido através das pontes que construírem.
Em cada opinião divergente, precisamos de encontrar o local certo onde se possa construir uma ponte com outra perspectiva diferente. Ser pontífice é estar ao serviço do encontro e da transformação da Humanidade. Porque inevitavelmente quem estabelece uma ponte transforma-se no encontro com o Outro. Fica melhor. Ganha cores que não tinha. Vê o Mundo por outra janela, enquanto também mostra o que se observa da sua.
Se levarmos a sério o ser pontífice, o Mundo ficará melhor.
Em registo democrático e de desejável igualdade entre todos os cidadãos, a definição de um caminho comum que a todos mobilize e que a ninguém desrespeite, que parta das diferenças para chegar às convergências, constitui um dos maiores desafios.
Este objectivo torna-se tanto mais difícil quanto cada um de nós tende a absolutizar a sua posição e a ter dificuldade de ver o Mundo pelos olhos do Outro. Limitamo-nos a olhar pela nossa janela e só admitimos como verdade aquilo que daí se vê. Ora, a consequência é evidente. Ficam a faltar pontes de contacto, escasseia o entendimento e cresce a hostilidade. Ficamos encerrados na Babel do nosso desentendimento. E tal como na metáfora dessa Torre, a obra pára e fica incompleta.
O nosso tempo precisa desesperadamente de uma cultura de pontes. De quem una, em vez de separar. De quem ouça, para além de falar. De quem faça, em vez de lamentar. Há muitas margens para ligar, que sem pontes nunca se encontrarão. Por outro lado, todos os dias surgem novas ameaças à destruição de pontes que existem. Multiplicam-se as margens sem paz. É impressionante que, em tempo de guerra, um dos objectivos mais atingidos sejam as pontes. Simbolicamente, na sua destruição, está a imagem dessa maldição e das suas consequências. Assim, uma das missões mais urgentes, para quem quer lutar por um Mundo melhor, é ser pontífice.
Pode soar estranho, porque estamos habituados a ouvir esta expressão como um dos títulos do Papa – Sumo Pontífice – mas a utilização desta designação não é exclusiva, nem está associada obrigatoriamente a questões religiosas.
A expressão Pontífice provém do latim, ‘pontifex’ formado por ‘pons’ e ‘facere’ que significa ‘fazer ponte’. E se ao Papa, na tradição da Igreja Católica, está incumbida a função de fazer a ponte entre Homens e Deus, por cada um de nós pode ser assumida a missão de fazer pontes na nossa sociedade. Entre as pessoas e as suas diferenças.
Para tal notável tarefa precisamos de reconhecer a existência de margens e ter a intenção firme de as ligar. Respeitando-as na sua essência, mas afirmando que não se esgotam em si mesmo. Que só ganham sentido através das pontes que construírem.
Em cada opinião divergente, precisamos de encontrar o local certo onde se possa construir uma ponte com outra perspectiva diferente. Ser pontífice é estar ao serviço do encontro e da transformação da Humanidade. Porque inevitavelmente quem estabelece uma ponte transforma-se no encontro com o Outro. Fica melhor. Ganha cores que não tinha. Vê o Mundo por outra janela, enquanto também mostra o que se observa da sua.
Se levarmos a sério o ser pontífice, o Mundo ficará melhor.
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