Que bom seria se nos momentos de decisão na vida tudo fosse preto ou branco. Que o mal se separasse do bem por uma linha visível e clara, onde não fosse difícil perceber as fronteiras nem muito menos que lado escolher. Mas não é assim. Na maioria das vezes ficamos perante dilemas de escolha difícil em que há, frequentemente, que escolher entre dois bens ou entre dois males. Acresce que a fronteira não surge como uma linha clara mas um espaço difuso. Ter clarividência suficiente para saber gerir os dilemas e escolher bem é, na política como na vida, um desafio sempre presente. Só que não é nada fácil.
Vem isto a propósito da recente declaração unilateral de independência da província sérvia do Kosovo. De um lado, o inquestionável direito dos povos à autodeterminação, expresso claramente na Carta das Nações Unidas e que no caso do Kosovo teve na declaração de domingo passado um apoio esmagador no seu parlamento. Parece não haver dúvidas de que a maioria dos kosovares quer ser independente. Mas, por outro lado, há a instabilidade que irá ser criada numa zona já por si efervescente, a oposição determinada da Sérvia, fortemente apoiada pela Rússia, e os ressentimentos que se gerarão. Esse passivo faz evidenciar um preço altíssimo a pagar por esta decisão – pelos kosovares mas também pelos seus vizinhos e, eventualmente, por nós todos – de tal forma que se questiona se faria sentido avançar já para a independência do Kosovo.
Temos, portanto, um dilema clássico entre dois bens: a autodeterminação de um povo e a estabilidade de uma região e mesmo de um continente. Como escolher o lado em que se quer estar? Provavelmente, a resposta certa está em não escolher – simplisticamente – um dos lados mas tentar fazer a ponte. Em vez de ser uma coisa ou outra, obter uma coisa e outra. Será possível?
O grande desafio na gestão de dilemas é conseguir ser fiel aos princípios mas estar aberto a uma negociação e a um gradualismo que nos faça evitar rupturas e choques. Estes podem destruir a bondade e a justiça de um princípio. Assim, esgotar todos os recursos negociais, usando e abusando da imaginação para a construção de soluções para vitórias comuns, é o caminho certo. Com paciência, muita paciência. Só assim se conseguirá ir mais longe.
No caso concreto do Kosovo, creio que não se esgotaram todas as possibilidades negociais para tentar uma solução concertada entre todas as partes. A aspiração frenética – compreensível – pela independência por parte dos kosovares parece ter feito ‘curto-circuitar’ um caminho negocial. Dirão alguns que jamais seria possível um acordo com os sérvios. Talvez, mas nunca o saberemos. O que temos, para já, é uma situação explosiva para gerir, com uma crescente tensão entre os apoiantes de um lado e outro. Russos e americanos, com os seus aliados europeus, vão esgrimir na arena internacional os seus argumentos pró e contra a independência do Kosovo. A paz vai ter que esperar.
20 fevereiro 2008
O Centro da Educação
Aparentemente, o sistema escolar desenvolveu um modelo de reflexão, planeamento e intervenção onde o Estudante – suposto centro da acção educativa, num modelo de desenvolvimento humanista – parece ser, algumas vezes, uma simples peça do processo, quase desconhecida e por isso incompreendida. Tomando-o como uma massa ainda por moldar, igual e inespecífica, o sistema, ainda que sem dolo nem sequer consciência, menospreza-o.
Consequentemente, as evidentes boas intenções dos objectivos, conteúdos e dos processos educativos esbarram num abismo para o qual não se construiu atempadamente pontes. Este abismo torna-se cada vez mais fundo, com a velocidade da mudança dos nossos tempos. Cada dia que passa a outra margem está mais longe. A velocidade da mudança, que contribui para que as gerações que convivem na Escola (professores e estudantes) se tornem mais distantes, aconselha a recuperar para o centro da discussão a prioridade ao (re)conhecimento sistemático do centro e razão de ser da Educação: os estudantes.
É urgente que não nos deixemos manietar pelos interesses (muitos deles, legítimos) do que permanece no sistema – docentes, programas, procedimentos, estrutura do Ministério – e que, por isso, têm uma capacidade de pressão mais sensível. É necessário evitar ser-se submerso por uma imensidão de problemas laterais que tendem a perturbar a clarividência sobre o centro da Educação.
É evidente que este não é um problema exclusivo da Escola. Outros importantes intervenientes no processo educativo sofrem de limitações equivalentes. Apesar dos esforços evidentes de aproximação geracional são muitos os pais que não partilham de um código que lhes permita compreender e interagir com os filhos. Mas, apesar disso, a Família parece estar a gerir melhor este objectivo de compreensão e comunicação com os filhos do que a Escola com os seus estudantes.
Neste contexto parece evidente que, se assumirmos os alunos como o centro da Educação, se torna tão necessário conhecê-los e compreendê-los quanto definir os conteúdos e os processos educativos, pois não há eficácia educativa sem um justo equilíbrio da atenção a estas duas dimensões.
Note-se que este conhecimento não se limita só a uma abordagem – aliás essencial – da Psicologia da Infância ou da Adolescência, nem, muito menos, a um simples estudo mais aprofundado da Pedagogia. É fundamental estar atento a traços mais subtis e voláteis: as tendências e as modas, os ídolos e as referências, o vocabulário e os códigos não escritos, os programas de televisão e os jogos de computador, a música e as causas deveriam ser suficientemente conhecidas para que a Educação seja eficaz.
O desafio é grande. Mas se a resposta não for esta, arriscamo-nos à total ineficácia do esforço educativo do nosso sistema.
Consequentemente, as evidentes boas intenções dos objectivos, conteúdos e dos processos educativos esbarram num abismo para o qual não se construiu atempadamente pontes. Este abismo torna-se cada vez mais fundo, com a velocidade da mudança dos nossos tempos. Cada dia que passa a outra margem está mais longe. A velocidade da mudança, que contribui para que as gerações que convivem na Escola (professores e estudantes) se tornem mais distantes, aconselha a recuperar para o centro da discussão a prioridade ao (re)conhecimento sistemático do centro e razão de ser da Educação: os estudantes.
É urgente que não nos deixemos manietar pelos interesses (muitos deles, legítimos) do que permanece no sistema – docentes, programas, procedimentos, estrutura do Ministério – e que, por isso, têm uma capacidade de pressão mais sensível. É necessário evitar ser-se submerso por uma imensidão de problemas laterais que tendem a perturbar a clarividência sobre o centro da Educação.
É evidente que este não é um problema exclusivo da Escola. Outros importantes intervenientes no processo educativo sofrem de limitações equivalentes. Apesar dos esforços evidentes de aproximação geracional são muitos os pais que não partilham de um código que lhes permita compreender e interagir com os filhos. Mas, apesar disso, a Família parece estar a gerir melhor este objectivo de compreensão e comunicação com os filhos do que a Escola com os seus estudantes.
Neste contexto parece evidente que, se assumirmos os alunos como o centro da Educação, se torna tão necessário conhecê-los e compreendê-los quanto definir os conteúdos e os processos educativos, pois não há eficácia educativa sem um justo equilíbrio da atenção a estas duas dimensões.
Note-se que este conhecimento não se limita só a uma abordagem – aliás essencial – da Psicologia da Infância ou da Adolescência, nem, muito menos, a um simples estudo mais aprofundado da Pedagogia. É fundamental estar atento a traços mais subtis e voláteis: as tendências e as modas, os ídolos e as referências, o vocabulário e os códigos não escritos, os programas de televisão e os jogos de computador, a música e as causas deveriam ser suficientemente conhecidas para que a Educação seja eficaz.
O desafio é grande. Mas se a resposta não for esta, arriscamo-nos à total ineficácia do esforço educativo do nosso sistema.
Esperanças de Portugal
Comemora-se hoje os 400 do nascimento do Padre António Vieira, um dos grandes de Portugal. Do muito que se poderia dizer nesta ocasião, ilumina-se uma das ideias mais incompreendidas – e ridicularizadas – do pregador: o V Império.
Nascido em 1608, em Lisboa, Vieira conhece a sua Pátria num contexto de profunda crise. Com o desastre de Alcácer Quibir, onde em 1578 morrera o rei D. Sebastião, Portugal ficara sem descendentes e vulnerável à anexação por Espanha, que acaba por acontecer em 1580. Entre mortes e resgates, o País fica destroçado e, longe dos tempos de euforia dos Descobrimentos, entra no seu período mais negro.
Alguns anos depois, a resistência à anexação vai começando a ganhar forma mas eram grandes os obstáculos à concretização do desígnio da Restauração. A depressão pós-Alcácer Quibir e a força dos ocupantes tornam-na quase impossível.
Quando, em 1640, acontece a Restauração da Independência, é natural que muitos lhe atribuam contornos de milagre. Mas a profunda crise que Portugal vivia à época não se poderia resolver de um dia para outro. A independência reconquistada necessitava de ser consolidada todos os dias.
António Vieira, que ruma à metrópole em 1641, liderando uma delegação da província do Brasil que vem reconhecer o novo monarca, percepciona esse novo desafio e assume essa missão, em diferentes roupagens.
Este novo combate, fê-lo o jesuíta com todo o empenho, nomeadamente no púlpito e na pena, procurando construir um capital simbólico de esperança.
Aqui estará, provavelmente, a raiz das obras – ‘Esperanças de Portugal’, ‘Quinto Império do Mundo’, ‘História do Futuro’ e ‘Chave dos Profetas’ – que, duas décadas mais tarde, vão dar corpo ao mito do V Império.
Se considerado no essencial da sua mensagem e se focado na sua principal motivação mobilizadora de uma nação em perigo, o mito do V Império de António Vieira faz falta ao Portugal contemporâneo.
Como no seu tempo, Portugal precisa de se ultrapassar e reencontrar o seu destino no Mundo. Como na sua época, o desafio do multiculturalismo, da defesa da diversidade, do diálogo entre crentes e não crentes, bem como a promoção da dignidade humana são temas em agenda.
Mas, sobretudo, em tempos de crise, onde a nação se inquieta, urge afirmar que há futuro. Que Portugal pode ser capaz, como já o foi, de mais e melhor. É fundamental actualizar as ‘Esperanças de Portugal’. E se o V Império, tal como o sonhou Vieira, está datado, o essencial da sua função – construir a esperança, criar confiança e oferecer um desígnio nacional – continua actual e necessário.
Faltam Vieiras que o digam ao nosso tempo. Com engenho e arte.
Nascido em 1608, em Lisboa, Vieira conhece a sua Pátria num contexto de profunda crise. Com o desastre de Alcácer Quibir, onde em 1578 morrera o rei D. Sebastião, Portugal ficara sem descendentes e vulnerável à anexação por Espanha, que acaba por acontecer em 1580. Entre mortes e resgates, o País fica destroçado e, longe dos tempos de euforia dos Descobrimentos, entra no seu período mais negro.
Alguns anos depois, a resistência à anexação vai começando a ganhar forma mas eram grandes os obstáculos à concretização do desígnio da Restauração. A depressão pós-Alcácer Quibir e a força dos ocupantes tornam-na quase impossível.
Quando, em 1640, acontece a Restauração da Independência, é natural que muitos lhe atribuam contornos de milagre. Mas a profunda crise que Portugal vivia à época não se poderia resolver de um dia para outro. A independência reconquistada necessitava de ser consolidada todos os dias.
António Vieira, que ruma à metrópole em 1641, liderando uma delegação da província do Brasil que vem reconhecer o novo monarca, percepciona esse novo desafio e assume essa missão, em diferentes roupagens.
Este novo combate, fê-lo o jesuíta com todo o empenho, nomeadamente no púlpito e na pena, procurando construir um capital simbólico de esperança.
Aqui estará, provavelmente, a raiz das obras – ‘Esperanças de Portugal’, ‘Quinto Império do Mundo’, ‘História do Futuro’ e ‘Chave dos Profetas’ – que, duas décadas mais tarde, vão dar corpo ao mito do V Império.
Se considerado no essencial da sua mensagem e se focado na sua principal motivação mobilizadora de uma nação em perigo, o mito do V Império de António Vieira faz falta ao Portugal contemporâneo.
Como no seu tempo, Portugal precisa de se ultrapassar e reencontrar o seu destino no Mundo. Como na sua época, o desafio do multiculturalismo, da defesa da diversidade, do diálogo entre crentes e não crentes, bem como a promoção da dignidade humana são temas em agenda.
Mas, sobretudo, em tempos de crise, onde a nação se inquieta, urge afirmar que há futuro. Que Portugal pode ser capaz, como já o foi, de mais e melhor. É fundamental actualizar as ‘Esperanças de Portugal’. E se o V Império, tal como o sonhou Vieira, está datado, o essencial da sua função – construir a esperança, criar confiança e oferecer um desígnio nacional – continua actual e necessário.
Faltam Vieiras que o digam ao nosso tempo. Com engenho e arte.
Simetria
Há alguns meses, o Estado desencadeou uma iniciativa inédita de divulgar na internet a lista de grandes devedores, como mecanismo de pressão e de condicionamento social desses refractários. Ao que parece, tal medida teve um sucesso razoável na recuperação de alguns créditos pois devedores houve que, perante tal iminência, se apressaram a pagar as suas dívidas. Recentemente, ainda que de forma limitada, o Tribunal de Contas fez o inverso: publicou a lista de credores do Estado. Era o mínimo que se exigia.
Na passada semana, num outro eixo, o Governo veio anunciar que o Estado procuraria reduzir até 2010 os seus prazos de pagamento da média actual de cinco meses para 30 a 40 dias.
Estas questões sinalizam um tema central para a recuperação do prestígio das instituições. O Estado, enquanto emanação de todos nós, deve ser sempre pessoa de bem e nunca deve abusar da sua posição dominante. Deve, por isso, na relação com o cidadão, com as empresas e com as instituições da sociedade civil, ser exemplar. Desde logo, deve cultivar uma relação simétrica e recíproca. Não pode, por exemplo, exigir ao cidadão ou à Empresa algo que não pratica. Não deve cultivar uma relação de desconfiança prévia e de um “pague primeiro e queixe-se depois”. Por isso, se quer publicar as dívidas que cidadãos ou empresas têm para com ele, deve começar por publicar as suas dívidas para com cidadãos ou empresas. Essas listas têm de estar lado a lado.
Em simultâneo, defendo convictamente que o Estado deve aceitar que se aplique às suas dívidas para com os seus credores – individuais ou colectivos – as mesmas penalizações que cultiva para com os seus devedores. Ou seja, não é aceitável que o Estado não pague juros de mora por pagamentos atrasados para lá do prazo acordado, sendo que, naturalmente, não deveria sequer ter esse atraso de pagamentos. Sei, por experiência própria, que muitos dos atrasos não estão dependentes da vontade dos funcionários ou dirigentes públicos mas de um sistema incrivelmente burocrático e pesado. Mas, perante essas dificuldades, a resposta certa é, por um lado, melhorar o sistema mas, por outro, assumir os custos desses atrasos, pagando os devidos juros de mora.
Um outro desafio passa por vir a ser aceite o pagamento de dívidas ao Estado com créditos pendentes. Isto é, se devo ao Estado 10 e o Estado me deve 100, fica a dever-me só 90. Esta é uma matemática simples que ajudaria a moralizar relações simétricas e de respeito mútuo. Ora, o que vigora actualmente como regra é que eu pague já os 10 ao Estado e o Estado pagar-me-á os 100, sem juros, quando puder.
Note-se que não cultivo uma visão anti-Estado. Pelo contrário. Faço-o por valorizar extraordinariamente a sua função. Mas um Estado sério, eficiente e eficaz. Um Estado digno, respeitado e respeitador.
Na passada semana, num outro eixo, o Governo veio anunciar que o Estado procuraria reduzir até 2010 os seus prazos de pagamento da média actual de cinco meses para 30 a 40 dias.
Estas questões sinalizam um tema central para a recuperação do prestígio das instituições. O Estado, enquanto emanação de todos nós, deve ser sempre pessoa de bem e nunca deve abusar da sua posição dominante. Deve, por isso, na relação com o cidadão, com as empresas e com as instituições da sociedade civil, ser exemplar. Desde logo, deve cultivar uma relação simétrica e recíproca. Não pode, por exemplo, exigir ao cidadão ou à Empresa algo que não pratica. Não deve cultivar uma relação de desconfiança prévia e de um “pague primeiro e queixe-se depois”. Por isso, se quer publicar as dívidas que cidadãos ou empresas têm para com ele, deve começar por publicar as suas dívidas para com cidadãos ou empresas. Essas listas têm de estar lado a lado.
Em simultâneo, defendo convictamente que o Estado deve aceitar que se aplique às suas dívidas para com os seus credores – individuais ou colectivos – as mesmas penalizações que cultiva para com os seus devedores. Ou seja, não é aceitável que o Estado não pague juros de mora por pagamentos atrasados para lá do prazo acordado, sendo que, naturalmente, não deveria sequer ter esse atraso de pagamentos. Sei, por experiência própria, que muitos dos atrasos não estão dependentes da vontade dos funcionários ou dirigentes públicos mas de um sistema incrivelmente burocrático e pesado. Mas, perante essas dificuldades, a resposta certa é, por um lado, melhorar o sistema mas, por outro, assumir os custos desses atrasos, pagando os devidos juros de mora.
Um outro desafio passa por vir a ser aceite o pagamento de dívidas ao Estado com créditos pendentes. Isto é, se devo ao Estado 10 e o Estado me deve 100, fica a dever-me só 90. Esta é uma matemática simples que ajudaria a moralizar relações simétricas e de respeito mútuo. Ora, o que vigora actualmente como regra é que eu pague já os 10 ao Estado e o Estado pagar-me-á os 100, sem juros, quando puder.
Note-se que não cultivo uma visão anti-Estado. Pelo contrário. Faço-o por valorizar extraordinariamente a sua função. Mas um Estado sério, eficiente e eficaz. Um Estado digno, respeitado e respeitador.
Subscrever:
Mensagens (Atom)