Poucos conceitos estarão tão fora de moda como o sacrifício. Imersos num tempo onde a regra é o prazer e a medida, a remuneração imediata, falar de qualquer grama de sacrifício parece um disparate.
As últimas décadas para Portugal, apesar das dificuldades ainda existentes, foram um tempo de grande crescimento económico, em que faixas crescentes da nossa população ascenderam a um nível de vida que não tinham. Afastamo-nos do tempo de escassez e progressivamente abrimos as portas à abundância. E num gesto generoso de facilitar aos nossos filhos uma vida melhor que a dos nossos antepassados, fomos alisando o caminho. O efeito perverso foi a criação de uma “geração bife do lombo”, no dizer de alguém. Poucos habituados à adversidade e à secura, mais talhados para a facilidade das planícies do que para a escalada de montanhas, muitos de nós damo-nos mal com a dureza da vida. Parece que nos esquecemos que “Deus dá as nozes, mas não as parte”. Sofremos com tempos de seca em que é preciso viver sem a frescura das águas correntes. Falta-nos o músculo que se adquire com o esforço e com o sacrifício.
Mas, no nosso íntimo, todos sabemos que a vida é feita, antes de tudo, de esforço e de trabalho. Ainda que nos vendam uma qualquer outra miragem, acabamos sempre por nos confrontar com essa realidade. Ninguém, que seja honesto, colhe antes do esforço de semear. O sabor da vitória vem depois do suor do trabalho. Ora, o problema é que na nossa sociedade instantânea, feita de já e de agora, não temos paciência para esperar. Ou queremos mesmo fruto sem esforço.
Mas há ainda uma outra dimensão do sacrifício que importa cultivar: a dádiva gratuita e sem retorno, no silêncio dos gestos discretos. A capacidade de dar um sentido não instrumental a um gesto de solidariedade, oferecendo-lhe a dignidade e o alcance que vai para além das medições mais banais. O ter menos - “tempo” ou “dinheiro” - para que alguém tenha um pouco mais.
Tenho tido a sorte de me cruzar com pessoas que são excelentes exemplos desta forma de sacrifício que, neste caso, tem outro significado. Já não se trata de uma definição comum de sacrifício enquanto esforço, enquanto remuneração diferida no tempo, mas sim da definição mais profunda de sacrifício enquanto “dádiva de algo que se torna sagrado”. Aquelas dádivas tornam-se sagradas.
Neste semana tão importante para os cristãos, vale a pena partilhar este sentido do Sacrifício, de tornar sagrada uma dádiva. De se descentrar de si, por algo ou por alguém. De fazer o verdadeiro sacrifício como Aquele que morreu na Cruz há 2000 anos.
23 março 2008
D. Estefânia
Nos últimos seis meses, por duas vezes, fui à Urgência do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, com as minhas filhas. E que encontrei? Um caos? Uma vergonha? Ora, importa relatar o que encontrei. Num País habituado a reparar sempre no que corre mal, no caso marcado pela incompetência, desleixo e falta de empenho, é essencial contar a experiência que vivi.
Nas duas vezes – estatisticamente relevante, para além da sorte ou do acaso - vi um serviço de Urgência a trabalhar com enorme qualidade e competência. Com organização e método, simpatia e dedicação, toda a equipa com que me cruzei, desde o pessoal administrativo, às médicas e enfermeiras, parecia sintonizado num padrão de qualidade que o nosso olhar pessimista não esperaria num Hospital português. A realidade é muito melhor que a nossa expectativa.
Apesar de não beneficiarem de um espaço moderno e confortável, pois o Hospital acusa já o peso da idade, aqueles profissionais dão o seu melhor, no contexto que têm. Por exemplo, nalguns gabinetes médicos, são obrigados a atenderem dois doentes em simultâneo. Mas até isso reflecte uma atitude centrada no utente, visando reduzir os tempos de espera, em desfavor do seu conforto do ambiente de trabalho. Nos pequenos detalhes também marcam pontos. A pensar nos utentes, as indicações nas paredes, com cores, orientam-nos até cada serviço e nas salas de espera da radiologia ou do laboratório de análises, as pinturas infantis aliviam a tensão de estar num hospital.
Quis trazer esta experiência de utente da urgência do D. Estefânia para sinalizar vários traços que deveriam ser inspiradores para enfrentarmos os desafios que temos pela frente.
O primeiro traço é elementar, mas sistematicamente maltratado: Nós somos capazes. Simplesmente isso. Somos capazes. De nos organizarmos, de sermos acolhedores nos serviços públicos, de nos centrarmos no utentes, de imaginar soluções para além do estabelecido. Os portugueses são tão competentes como os melhores. Na administração pública, como nas IPSS, ou nas empresas. Somos capazes.
O segundo traço passa por afirmar que podemos sempre fazer melhor com o que temos. Se temos um limão, façamos uma limonada, mas façamos. Não nos queixemos de não ter laranjas, para fazer laranjada. Mesmo dos recursos mais escassos é possível tirar mais valias e não ficar à espera das condições extraordinárias para fazer sempre melhor.
Terceira ideia: Todos somos importantes. Do segurança, ao funcionário administrativo, à médica, à senhora da limpeza... o sucesso das organizações depende de todas as suas parcelas cumprirem o seu papel. Ninguém está dispensado de fazer a sua parte.
Finalmente, todos nós precisamos de reeducar o nosso olhar. Precisamos de desocultar a realidade e ver o muito de bom que temos. Só assim ganharemos força para os desafios que nos faltam vencer.
Nas duas vezes – estatisticamente relevante, para além da sorte ou do acaso - vi um serviço de Urgência a trabalhar com enorme qualidade e competência. Com organização e método, simpatia e dedicação, toda a equipa com que me cruzei, desde o pessoal administrativo, às médicas e enfermeiras, parecia sintonizado num padrão de qualidade que o nosso olhar pessimista não esperaria num Hospital português. A realidade é muito melhor que a nossa expectativa.
Apesar de não beneficiarem de um espaço moderno e confortável, pois o Hospital acusa já o peso da idade, aqueles profissionais dão o seu melhor, no contexto que têm. Por exemplo, nalguns gabinetes médicos, são obrigados a atenderem dois doentes em simultâneo. Mas até isso reflecte uma atitude centrada no utente, visando reduzir os tempos de espera, em desfavor do seu conforto do ambiente de trabalho. Nos pequenos detalhes também marcam pontos. A pensar nos utentes, as indicações nas paredes, com cores, orientam-nos até cada serviço e nas salas de espera da radiologia ou do laboratório de análises, as pinturas infantis aliviam a tensão de estar num hospital.
Quis trazer esta experiência de utente da urgência do D. Estefânia para sinalizar vários traços que deveriam ser inspiradores para enfrentarmos os desafios que temos pela frente.
O primeiro traço é elementar, mas sistematicamente maltratado: Nós somos capazes. Simplesmente isso. Somos capazes. De nos organizarmos, de sermos acolhedores nos serviços públicos, de nos centrarmos no utentes, de imaginar soluções para além do estabelecido. Os portugueses são tão competentes como os melhores. Na administração pública, como nas IPSS, ou nas empresas. Somos capazes.
O segundo traço passa por afirmar que podemos sempre fazer melhor com o que temos. Se temos um limão, façamos uma limonada, mas façamos. Não nos queixemos de não ter laranjas, para fazer laranjada. Mesmo dos recursos mais escassos é possível tirar mais valias e não ficar à espera das condições extraordinárias para fazer sempre melhor.
Terceira ideia: Todos somos importantes. Do segurança, ao funcionário administrativo, à médica, à senhora da limpeza... o sucesso das organizações depende de todas as suas parcelas cumprirem o seu papel. Ninguém está dispensado de fazer a sua parte.
Finalmente, todos nós precisamos de reeducar o nosso olhar. Precisamos de desocultar a realidade e ver o muito de bom que temos. Só assim ganharemos força para os desafios que nos faltam vencer.
O Império do hoje
Vivemos enclausurados no presente. É como se não tivéssemos passado, nem futuro. Sob a ditadura do instantâneo, debaixo da imposição da velocidade e limitados pelos ciclos curtos, vivemos já e agora. Depois logo se vê.
Quais são as consequências deste desígnio de vida? Onde nos leva esta “absolutização” do presente? Que sentido profundo para quem só conhece o imediato?
Desde logo, uma sociedade assim ignora os mais velhos. Coloca-os à margem e dispensa a sua memória. Acha-os um empecilho porque lhe lembra o passado desinteressante e deprecia-os porque são pouco produtivos na lógica do hoje. Atribui-lhes gavetas douradas, onde não devem incomodar. Permite-lhes que durem, mas não que existam verdadeiramente. Ficam pois impedidos de ser cidadãos plenos, e de nos trazer essa preciosa memória do passado, que nos ajudaria a entender o presente.
É bom não esquecer que quem ignora o passado, não aprende. Perde a densidade da experiência, a sabedoria que a tradição dos séculos nos traz. Ao cortar com o ciclo das gerações, que vão passando de mão em mão o testemunho da humanidade, dissipa-se o valor acrescentado da civilização. Esquece-se a natureza humana e ignora-se, por um lado, as suas fragilidades e, por outro, as suas potencialidades.
Precisamos de cultivar a memória do passado, sem saudosismos, nem alienações. E, para isso, necessitamos de recriar uma cidadania sénior, através da qual os mais velhos se sintam também construtores do presente. Com dignidade e valor acrescentado.
Mas há um outro lado da moeda deste império. Quem vive para o hoje, também ignora o amanhã. Não poupa, nem planta. Só desfruta. Desresponsabiliza-se da preservação dos recursos naturais e deixa o planeta aquecer. Demite-se de transmitir valores e tradições aos que nos sucedem, no pressuposto de não vale a pena. Não tem paciência, nem persistência. Não é capaz de diferir remunerações, nem de as emprestar ao futuro. Quer tudo para si e já.
Paradoxalmente, apesar de um discurso e de uma aparente prática de valorização das crianças e dos jovens, os escravos do hoje não são verdadeiramente solidários com as novas gerações. Se o fossem, agiriam diferentemente.
Temos, por isso, perante nós um enorme desafio de cultivar a solidariedade intergeracional. De reforçar uma cadeia, onde tudo se liga e na qual somos responsáveis não só pela gestão do presente, mas também por continuar o passado e viabilizar o futuro. A História não começou connosco, nem tão pouco irá acabar connosco. Por isso o império do hoje é mais uma armadilha a evitar.
Quais são as consequências deste desígnio de vida? Onde nos leva esta “absolutização” do presente? Que sentido profundo para quem só conhece o imediato?
Desde logo, uma sociedade assim ignora os mais velhos. Coloca-os à margem e dispensa a sua memória. Acha-os um empecilho porque lhe lembra o passado desinteressante e deprecia-os porque são pouco produtivos na lógica do hoje. Atribui-lhes gavetas douradas, onde não devem incomodar. Permite-lhes que durem, mas não que existam verdadeiramente. Ficam pois impedidos de ser cidadãos plenos, e de nos trazer essa preciosa memória do passado, que nos ajudaria a entender o presente.
É bom não esquecer que quem ignora o passado, não aprende. Perde a densidade da experiência, a sabedoria que a tradição dos séculos nos traz. Ao cortar com o ciclo das gerações, que vão passando de mão em mão o testemunho da humanidade, dissipa-se o valor acrescentado da civilização. Esquece-se a natureza humana e ignora-se, por um lado, as suas fragilidades e, por outro, as suas potencialidades.
Precisamos de cultivar a memória do passado, sem saudosismos, nem alienações. E, para isso, necessitamos de recriar uma cidadania sénior, através da qual os mais velhos se sintam também construtores do presente. Com dignidade e valor acrescentado.
Mas há um outro lado da moeda deste império. Quem vive para o hoje, também ignora o amanhã. Não poupa, nem planta. Só desfruta. Desresponsabiliza-se da preservação dos recursos naturais e deixa o planeta aquecer. Demite-se de transmitir valores e tradições aos que nos sucedem, no pressuposto de não vale a pena. Não tem paciência, nem persistência. Não é capaz de diferir remunerações, nem de as emprestar ao futuro. Quer tudo para si e já.
Paradoxalmente, apesar de um discurso e de uma aparente prática de valorização das crianças e dos jovens, os escravos do hoje não são verdadeiramente solidários com as novas gerações. Se o fossem, agiriam diferentemente.
Temos, por isso, perante nós um enorme desafio de cultivar a solidariedade intergeracional. De reforçar uma cadeia, onde tudo se liga e na qual somos responsáveis não só pela gestão do presente, mas também por continuar o passado e viabilizar o futuro. A História não começou connosco, nem tão pouco irá acabar connosco. Por isso o império do hoje é mais uma armadilha a evitar.
Poder Escolher
Saiu na passada segunda-feira um relatório da União Europeia sobre o risco de pobreza infantil que gerou justificadas preocupações. Ainda que se refira a dados de 2005 e que desde aí se tenham registado alguns progressos, o documento aponta para 24% de crianças expostas ao risco de pobreza. É um murro no estômago. Com agregados familiares marcados pelo desemprego e pela baixa escolaridade dos pais, muitas destas crianças parecem ter o destino traçado à nascença. A probabilidade de virem a perpetuar o ciclo da pobreza, dispondo de um (quase) grau zero de liberdade para uma vida diferente, é muito elevado. E a maior pobreza é nascer prisioneiro de uma sina.
Se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, o Homem nasceu para ser livre. Ao vivermos permanentemente em contexto de escolhas, é a capacidade de as fazer livre e responsavelmente que nos torna, em grande medida, senhores do nosso destino e, por isso, seres livres.
O problema é que, para aquelas crianças, as escolhas são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, muitas vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade.
Com efeito, demasiadas crianças e inúmeros jovens vivem em contextos que lhes limitam as escolhas presentes e determinam prisões futuras: as crianças que vivem “fechadas na rua”; os que têm as suas famílias desestruturadas; as que vivem embebidas em violência; os que ficam fora da Escola cedo demais; as que nunca poderão começar a corrida em igualdade de circunstâncias... Que podem escolher estas crianças e jovens? Têm escolha possível?
Sublinhe-se, no entanto, que é para muitas destas crianças que vários protagonistas – Escolas, IPSS, Programa Escolhas, Programa Eliminação do Trabalho infantil... – vão dando o seu melhor, em prol da inclusão social e da construção de uma vida diferente. Nas suas múltiplas actividades, técnicos e instituições procuram aumentar os seus graus de liberdade, ajudando a alargar as escolhas possíveis. E é bom termos consciência que muito já se andou e melhorou, apesar dos imensos desafios que ainda temos pela frente. Mas há que continuar.
Devemos a estas crianças um futuro onde esteja ao seu alcance a possibilidade de escapar à pobreza onde nasceram. Só então, o seu futuro estará nas suas mãos e por ele serão responsáveis. Mas, antes...temos nós que cumprir a nossa responsabilidade.
Se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, o Homem nasceu para ser livre. Ao vivermos permanentemente em contexto de escolhas, é a capacidade de as fazer livre e responsavelmente que nos torna, em grande medida, senhores do nosso destino e, por isso, seres livres.
O problema é que, para aquelas crianças, as escolhas são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, muitas vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade.
Com efeito, demasiadas crianças e inúmeros jovens vivem em contextos que lhes limitam as escolhas presentes e determinam prisões futuras: as crianças que vivem “fechadas na rua”; os que têm as suas famílias desestruturadas; as que vivem embebidas em violência; os que ficam fora da Escola cedo demais; as que nunca poderão começar a corrida em igualdade de circunstâncias... Que podem escolher estas crianças e jovens? Têm escolha possível?
Sublinhe-se, no entanto, que é para muitas destas crianças que vários protagonistas – Escolas, IPSS, Programa Escolhas, Programa Eliminação do Trabalho infantil... – vão dando o seu melhor, em prol da inclusão social e da construção de uma vida diferente. Nas suas múltiplas actividades, técnicos e instituições procuram aumentar os seus graus de liberdade, ajudando a alargar as escolhas possíveis. E é bom termos consciência que muito já se andou e melhorou, apesar dos imensos desafios que ainda temos pela frente. Mas há que continuar.
Devemos a estas crianças um futuro onde esteja ao seu alcance a possibilidade de escapar à pobreza onde nasceram. Só então, o seu futuro estará nas suas mãos e por ele serão responsáveis. Mas, antes...temos nós que cumprir a nossa responsabilidade.
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