09 dezembro 2007

A outra árvore

Com o calendário a mostrar Dezembro, começam a multiplicar-se as árvores de Natal. Dentro e fora de portas, em versões de plástico ou ainda com o tradicional pequeno pinheiro, vão enfeitando os nossos dias. Nada contra. Sinal de festa que faz falta à nossa vida, sobretudo se tiver algum sentido além de fugazes e vazios apelos consumistas.

No Porto, a este propósito, acontece por estes dias um contraste cheio de significado. Na rotunda da Boavista, transplantada da experiência nos anos anteriores em Lisboa, está uma árvore de Natal gigante. Do alto dos seus 76 metros e com o brilho de três milhões de lâmpadas, ilumina toda a rotunda. São 280 toneladas de artefactos sofisticados para comemorar comercialmente a quadra natalícia. Muitos euros a terão feito crescer, talvez para lembrar que... é tempo de comprar prendas para pôr na árvore de Natal caseira.

Mas, longe do centro, no Bairro do Cerco, tido como território difícil, está uma outra árvore. De Natal, também. Com muito mais significado, porém. Fora do bulício das compras, entre os que não tiveram lugar na hospedaria, lá está aquela árvore especial.

Um grande plátano, enraizado há décadas no meio do bairro, foi transformado numa árvore de Natal que é uma metáfora notável. No topo desta outra árvore está uma estrela de Natal. Feita pelas pessoas do bairro e soldada por um antigo metalúrgico. Foi colocada como expoente desta dinâmica. Como estrela que aponta um caminho. Mais abaixo, nos seus ramos repousam não só as luzes que um morador permitiu que fossem ligadas a uma tomada eléctrica da sua casa. Penduradas nos seus braços estão também faixas coloridas. Nelas estão inscritas frases que são os desejos de Natal das crianças para o seu bairro. E também o que cada uma destas crianças pensa que pode fazer para que esse desejo se concretize. Nem mais, nem menos.

Não poderia haver melhor retrato de Natal. Entre os mais excluídos, que ficam à margem, também é possível fazer brilhar a esperança. Com a participação de todos e para todos. Numa lógica animada pelas suas crianças, nas quais os desejos não são egoístas nem se referem a brinquedos ou gulodices. Pedem o que mais falta lhes faz e comprometem-se a não esperar que a concretização desse desejo caia do céu. Assumem fazer algo para que o desejo se torne realidade. Não que acreditem que por estes dias acabe instantaneamente o tráfico de droga, a violência e a pobreza que fazem sofrer o bairro. Mas porque sabem que, apesar de tudo, nas suas mãos está a capacidade de mudar alguma coisa.

Estão de parabéns Márcia Andrade e a equipa do projecto Pular a Cerca, do programa Escolhas, que, com o suporte do consórcio de instituições que promovem o projecto, deram um exemplo. Para todos estes protagonistas, o Natal já chegou. Como eles, muito podemos fazer para multiplicar a esperança nesta época.

04 dezembro 2007

Heróis anónimos

Sempre gostei das grandes biografias, das histórias de homens e mulheres notáveis, que se agigantaram em momentos críticos da História. Todos nós crescemos com os seus nomes à cabeceira dos nossos sonhos e ambicionámos ser parecidos. Mas, com a idade, vamo-nos acomodando ao possível.

O grande heroísmo com que sonhámos vai ficando progressivamente mais longe. Cada vez mais longe. Só que surge então a sabedoria de ver, à nossa volta, os heróis anónimos. Os que não têm direito a livro biográfico, nem a nome próprio nos escaparates da fama. Mas que representam um exemplo para todos nós. E que são alguns de vós.

Passo os olhos por eles. Descubro as mães que preparam os seus filhos ainda a manhã não tem luz, os deixam no infantário, partindo para o seu trabalho em transportes públicos a abarrotar. A jornada tem de ser cumprida como se nada mais fizessem e, no regresso, de novo a correria. Apanhar os miúdos, fazer compras, chegar a casa, dar jantar e deitar os miúdos e... preparar um novo dia que será igual. Perante elas me curvo, heroínas anónimas do nosso tempo.

Olho depois os pais que se desdobram numa luta pelo emprego que não está fácil, inventando aqui e além alternativas para compor um magro orçamento familiar. Admiro-os no esforço de se adaptarem aos novos tempos que também deles exigem a co-responsabilidade nas tarefas domésticas e no cuidar dos filhos. Percebo as suas angústias na relação com um mundo diferente dos seus filhos e com a incerteza de estarem à altura das responsabilidades. Perante eles me curvo, heróis anónimos do quotidiano.

Olho também para aqueles miúdos que, contra tudo e contra todos, resistem a condições adversas e não descambam. Que estudam quando o esperado era abandonar. Que alcançam sucesso, anulando o destino traçado de fracasso anunciado. Também perante estes me curvo, meus pequenos heróis desconhecidos.

Mas há mais. Muito mais. O pescador, que entre o frio da madrugada e o vento que faz baloiçar a sua casca de noz, insiste em procurar tirar do mar o seu pão de cada dia, com a salmoura a queimar as mãos e a dúvida a pairar sobre o amanhã. O condutor do comboio que não pode ter tempo para as suas divagações e se verga com a responsabilidade de milhares de vidas nas suas costas. O homem que recolhe o lixo malcheiroso e pesado que multiplicamos todos os dias, com quem nos cruzamos só em noites que regressamos tarde. A enfermeira que vela pelos seus doentes, no silêncio nocturno de um qualquer hospital, à disposição de um pedido de ajuda. O polícia que é, mais uma vez, chamado para acudir quem precisa, não sabendo que perigos esconde a escuridão... e tantos outros.

São heróis e heroínas sem notoriedade pública, mas porventura com muito mais valia humana do que alguns nomes consagrados. Anónimos que vão substituindo, na minha cabeceira, as biografias dos meus heróis de adolescente.

Dignidade e Liberdade

Quase no final do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos, é útil regressar aos fundamentos, à razão de ser, ao ‘porquê’ e ‘para quê’ de uma causa que nunca se esgotará.

A afirmação da igualdade de oportunidades não resulta senão da assunção clara e inequívoca da igual dignidade de todos os seres humanos. É aqui que tudo radica: nada nos distingue na plenitude da nossa dignidade. Cada pessoa é uma obra única, uma sinfonia perfeita, uma pérola irrepetível. Para lá de qualquer aparência, de diferença formal ou de origem distinta, cada pessoa é uma humanidade individual, no dizer de Mia Couto. Essa visão humanista coloca obrigatoriamente a Pessoa no centro das políticas e reconhece-a como princípio e fim de tudo. E sendo séria esta opção, deve ter consequências. A todos nós é exigido o esforço, quer numa expressão individual, quer na esfera colectiva, de fazer respeitar a dignidade humana, de todos e de cada um dos que nos rodeiam. E esse respeito passa obrigatoriamente pela criação de iguais oportunidades para todos.

Não podemos pactuar com campos inclinados, em que para uns o jogo é sempre feito contra a gravidade enquanto para outros se desenrola com a inclinação do campo a seu favor. Não podemos aceitar que na corrida da vida, na linha de partida, uns tenham tudo para vencer e outros mal consigam dar os primeiros passos. Conviver pacificamente com esta realidade injusta como de um fado inevitável se tratasse é ignorar o respeito pela dignidade humana. É desistir de parte da Humanidade.

Precisamos, por isso, de garantir a igualdade de oportunidades, para que cada homem e cada mulher possam ser verdadeiramente livres. E, assim, um ser único e diferente. Para que o seu destino seja fruto da sua vontade, do seu trabalho e das suas escolhas e não se encontre previamente escrito pelo contexto em que nasce. A liberdade e autodeterminação de cada pessoa deverão, assim, ser os únicos factores diferenciadores no trajecto de uma vida.

Sabemos ser esta uma utopia antiga. Sempre presente e sempre inatingível. Mas como avançaria o Mundo sem a ousadia de querer evoluir em direcção à perfeição dos ideais? Renovamos, hoje e sempre, a certeza de que só vale a pena viver em busca de um mundo mais justo, com lugar para todos, no respeito pela sua liberdade e na inclusão das suas diferenças. Na certeza absoluta da inviolabilidade da dignidade humana e na convicção de que esta só é respeitada se a todos forem concedidas oportunidades iguais.

Pontífices

E num tempo complexo e cheio de contradições, onde o conflito facilmente degenera em agressão e violência – pelo menos, verbal –, e num quadro social marcado pelo pluralismo, pela diversidade e pela fractura, coloca-se a questão de como gerir conflitos e diferenças.

Em registo democrático e de desejável igualdade entre todos os cidadãos, a definição de um caminho comum que a todos mobilize e que a ninguém desrespeite, que parta das diferenças para chegar às convergências, constitui um dos maiores desafios.

Este objectivo torna-se tanto mais difícil quanto cada um de nós tende a absolutizar a sua posição e a ter dificuldade de ver o Mundo pelos olhos do Outro. Limitamo-nos a olhar pela nossa janela e só admitimos como verdade aquilo que daí se vê. Ora, a consequência é evidente. Ficam a faltar pontes de contacto, escasseia o entendimento e cresce a hostilidade. Ficamos encerrados na Babel do nosso desentendimento. E tal como na metáfora dessa Torre, a obra pára e fica incompleta.

O nosso tempo precisa desesperadamente de uma cultura de pontes. De quem una, em vez de separar. De quem ouça, para além de falar. De quem faça, em vez de lamentar. Há muitas margens para ligar, que sem pontes nunca se encontrarão. Por outro lado, todos os dias surgem novas ameaças à destruição de pontes que existem. Multiplicam-se as margens sem paz. É impressionante que, em tempo de guerra, um dos objectivos mais atingidos sejam as pontes. Simbolicamente, na sua destruição, está a imagem dessa maldição e das suas consequências. Assim, uma das missões mais urgentes, para quem quer lutar por um Mundo melhor, é ser pontífice.

Pode soar estranho, porque estamos habituados a ouvir esta expressão como um dos títulos do Papa – Sumo Pontífice – mas a utilização desta designação não é exclusiva, nem está associada obrigatoriamente a questões religiosas.

A expressão Pontífice provém do latim, ‘pontifex’ formado por ‘pons’ e ‘facere’ que significa ‘fazer ponte’. E se ao Papa, na tradição da Igreja Católica, está incumbida a função de fazer a ponte entre Homens e Deus, por cada um de nós pode ser assumida a missão de fazer pontes na nossa sociedade. Entre as pessoas e as suas diferenças.

Para tal notável tarefa precisamos de reconhecer a existência de margens e ter a intenção firme de as ligar. Respeitando-as na sua essência, mas afirmando que não se esgotam em si mesmo. Que só ganham sentido através das pontes que construírem.

Em cada opinião divergente, precisamos de encontrar o local certo onde se possa construir uma ponte com outra perspectiva diferente. Ser pontífice é estar ao serviço do encontro e da transformação da Humanidade. Porque inevitavelmente quem estabelece uma ponte transforma-se no encontro com o Outro. Fica melhor. Ganha cores que não tinha. Vê o Mundo por outra janela, enquanto também mostra o que se observa da sua.

Se levarmos a sério o ser pontífice, o Mundo ficará melhor.

12 novembro 2007

Mães-coragem

O trágico acidente da semana passada, junto ao Terreiro do Paço, em Lisboa, em que morreram atropeladas duas mulheres e uma terceira ficou gravemente ferida, desocultou realidades que só longinquamente vamos percepcionando.

Filipa Lopes Semedo, de 57 anos, uma das vítimas mortais, imigrante são-tomense, mãe de 10 filhos, havia saído da sua casa, do outro lado do rio, às 4h.30m. da madrugada, para apanhar o primeiro barco que todas as manhãs atravessa o Tejo, trazendo os primeiros trabalhadores para a cidade. Com ela, viajavam outras mulheres africanas, de S. Tomé e Cabo-Verde, que vêm cuidar das limpezas dos muitos escritórios de Lisboa. Todas as vítimas atingidas por esta tragédia, tinham esse elo de união: vinham trabalhar, ainda não tinha o dia despertado, para as limpezas dos nossos escritórios.

Com efeito, nós que começamos o dia mais tarde, e que às quatro e meia da manhã ainda estamos no nosso descanso, não temos consciência da dureza de algumas vidas, em busca de pão para a família. Entre os muitos - portugueses e imigrantes - que são heróicos protagonistas destas vidas difíceis, devemos hoje particularmente uma homenagem à coragem destas mães africanas.

Agarrando com as duas mãos, qualquer emprego que lhes surja, ainda que não difira muito do circuito das limpezas ou da venda de peixe, estas mulheres, muitas delas também mães, enfrentam com uma coragem extraordinária o seu quotidiano. Rodeadas de obstáculos hostis, procuram – normalmente sozinhas - educar os seus filhos o melhor que podem, ainda que quase tudo se volte contra elas. Basta imaginar o que sentirá uma mãe ao ter que deixar, todos os dias, os seus filhos pequenos entregues a si próprios, ou a irmãos um pouco mais velhos, porque à hora que sai de sua casa não há creches abertas onde os possam deixar. E, quantas vezes, só regressam a casa depois do turno da tarde de limpezas, o que equivale a ver os filhos só à hora de jantar. São crianças que crescem sozinhas, na rua, como preço dos nossos escritórios limpos antes das 8 da manhã e depois da seis da tarde.

Mas Filipa não morreu sozinha naquela manhã. Ao seu lado, ficou Neuza, na juventude dos seus 18 anos, que atravessava a passadeira com a sua mãe, naquele momento fatídico.

A história da mãe de Neuza é a de muitas mães-coragem que emigrando, deixam os seus filhos no país de origem, à guarda da avó ou de algum familiar, sempre no sonho de um dia os poderem recuperar para junto de si. Juntam dinheiro, a partir de um magro salário, para conseguirem esse momento mágico de voltarem a juntar a família. Tinha sido essa a experiência da mãe de Neuza. Demorara quatro anos a juntar dinheiro para a passagem de avião da sua filha. Tinha conseguido trazê-la há seis meses para junto de si. Percebe-se, por isso, que após o atropelamento e apesar do seu estado muito grave, só gritasse o nome da sua filha. Nunca irá compreender porque morreu a sua filha Neuza, naquela manhã. Ainda haverá coragem que resista a mais esta provação?

01 novembro 2007

Reciprocidade

Há um quase automatismo nas relações humanas. A máxima “olho por olho, dente por dente”, mais do que uma receita para resposta a qualquer provocação, ou medida da pena para qualquer crime, é a descrição do impulso inato na natureza humana. Tendemos a responder da mesma moeda, a não nos deixarmos ficar. Como dizem os nossos amigos brasileiros, não somos de “levar desaforo para casa”. Agimos como se fossemos um espelho. Com uma pequena diferença. Se possível, respondemos com um pouco mais de intensidade em relação à ofensa que nos foi feita. É superior às nossas forças. E quando essa reciprocidade entra em ciclo vicioso, numa espiral de vingança que se perpetua no tempo, atravessando mesmo gerações, torna-se devastadora. Esta é a plataforma de onde humanamente partimos, se deixarmos correr os instintos.

Este traço da nossa maneira de ser, desperta duas reflexões. A primeira, decorre do efeito de se contrariar conscientemente o princípio da reciprocidade, quando este alimenta a espiral da vingança e da violência. Só se interrompe verdadeiramente esse ciclo quando alguém é suficientemente forte e corajoso para não agir com reciprocidade, ou dito de outra maneira, quando é capaz de perdoar. Por isso, quebrar a reciprocidade da agressão é a uma única forma de construir a paz.

Mas há uma outra consequência do princípio da reciprocidade nas relações humanas. Se tivermos a ousadia e o bem-senso de explorar este efeito para o bem, seremos agradavelmente surpreendidos. Da mesma maneira que maldade produz maldade, a bondade gera bondade. Basta começar a experimentar. O trânsito é um excelente laboratório. Por uma vez, não faça da estrada um terreno de combate, onde não pode deixar-se “comer por parvo”. Descontraia-se. Experimente, em vez de praguejar, esboçar um sorriso, e veja o que acontece. Em vez de se esforçar por não deixar um centímetro em relação ao carro da frente, para que ninguém entre na fila, experimente abrir espaço para quem está a tentar entrar. Num cruzamento, deixe passar, em vez de forçar a passagem e quando se verificar a fusão de duas filas numa só, aceite o principio da entrada intercalada de um carro de cada fila. É tão mais simples. E, finalmente, quando alguém tiver um gesto simpático consigo, agradeça...e veja o efeito. Em 95% dos casos sentirá os efeitos positivos da reciprocidade do bem.

Quando somos capazes de iniciar, ou reforçar, algo de bom, o efeito da reciprocidade amplia o gesto e contagia outros, que provavelmente irão continuar a cadeia para além do encontro consigo. E mesmo aqueles que o achem “anjinho” por estes gestos, ficarão a pensar neles. Um dia, também eles descobrirão que este é o caminho certo.

Sendo verdade que uma borboleta batendo as asas em Tóquio desperta uma tempestade no Ocidente, talvez não seja menos verdade que de pequenos gestos bons, graças ao efeito da reciprocidade, se poderá melhor um pouco o mundo em que vivemos. Podemos começar pelo trânsito.

Puritanismo

Não há nada mais irritante que o puritanismo. Quase sempre se evidencia como expressão hipócrita de quem exige aos outros aquilo que não faz, ou, na versão evangélica, que vê poeiras nos olhos dos outros, ignorando traves nos seus. Cuidando das aparências, vivendo mais de palavras do que de (bons) exemplos, os seus cultores cumprem um certo papel policial na nossa sociedade. Encontramo-los nos mais inesperados locais, sobre novos temas e, atrevo-me a dizer que, se procurarmos bem, encontraremos - infelizmente - alguns traços deste puritanismo em cada um de nós.

Uma destas evidências do puritanismo os nossos tempos é exercido relativamente aos políticos. Alvos da nossa desconfiança militante, deles exigimos comportamentos tão irrepreensíveis e tão exemplares que nem os santos caberiam nessa nossa grelha de exigência. Várias figuras notáveis da sociedade portuguesa, que poderiam dar um excelente contributo ao bem comum, através da política, quando a isso são instadas pensam duas vezes. E por causa deste puritanismo, dizem que não. Se assim continuarmos os que serão elegíveis para funções públicas contar-se-ão pelos dedos de uma mão. E talvez nem sejam precisos os dedos todos...

É bom lembrar que como herança negra da cultura do jornal O Independente, ficou em alguns media portugueses – e em todos nós, como seus consumidores – uma permanente tentação puritana de escrutínio. Ministros caíram, por exemplo, por haver dúvidas se haviam cumprido rigorosamente todas as suas obrigações fiscais. Gostamos de ter uma ASAE dos políticos, em que os principais fiscais são alguns jornalistas. Mas é isso honesto? Todos nós cumprimos rigorosamente as nossas obrigações fiscais? Pedimos sempre factura quando fazemos uma obra em casa, pagando o devido IVA? Declaramos tudo o que temos a declarar?

Esta tendência puritana, que não é exclusivo nacional, tem vindo a alargar-se nos âmbitos que alcança. Já não é só os impostos, mas também a carreira académica, as relações pessoais ou os interesses de cada um. Por exemplo, aceitaríamos divulgar publicamente cada ano, os nossos rendimentos, o saldo da nossa conta bancária, os imóveis, acções ou viaturas que possuímos? Não? Ora, exigimos isso, por lei, aos nossos políticos. Note-se que esta declaração fica disponível não só para o Tribunal Constitucional, como qualquer cidadão pode consultar, divulgar e opinar sobre essa declaração de rendimentos. Já vimos artigos de jornais elaborando, a partir dos dados dessas declarações, sobre a inteligência dos investimentos em bolsa de cada ministro. É isto razoável?

Note-se, como é óbvio, que não se advoga a fuga aos impostos ou o não cumprimento das leis. Ninguém está acima da lei. Todos somos chamados a respeitar as nossas obrigações. Sejamos cidadãos comuns, políticos, empresários ou jornalistas...Deixemo-nos pois destes puritanismos e sejamos exigentes, desde logo, connosco próprios.