Há cerca de quinhentos anos, estávamos nas vésperas de um dos acontecimentos mais negros na história de Lisboa. Em três dias – de 19 a 21 de Abril de 1506 – num movimento quase espontâneo, gerado por vozes fanáticas que exploraram um sentimento anti-semita pré-existente, libertaram-se demónios que chacinaram sem dó, nem piedade, duas a quatro mil pessoas. Suspeitas de permanecerem fiéis à tradição judaica, apesar de convertidos à força ao cristianismo (cristãos-novos), estas gentes foram trucidadas numa onda de loucura colectiva.
A propósito deste acontecimento é útil aprender com a História.
O populismo para arder necessita, tal como o fogo, de combustível, comburente e calor. Esses elementos constituintes do “triângulo” do fogo precisam estar presentes simultaneamente para que o incêndio ocorra. Façamos o paralelismo: nessa altura, o combustível era representado pelas condições sociais desfavoráveis de crise grave, induzida pela seca, com consequente fome, e agravada pela peste. Ontem, como hoje, o populismo só coloca multidões irracionais em movimento quando beneficia de um contexto de crise que lhe sirva de combustível. Sem ela, não arde. Por isso, sempre que se está perante crises de grande desemprego e pobreza alargada, todos os alertas devem estar monitorizados para este risco de “incêndio” social.
Mas a crise, por si só, não é suficiente. Precisa ainda de comburente. No século XVI, o contexto de anti-semitismo viabilizou a tragédia. Qual oxigénio para o incêndio social, o preconceito em relação ao “outro” – seja ele estrangeiro, judeu ou negro – é essencial para que a combustão se dê. A existência de índices elevados de xenofobia e de racismo, o desenvolvimento de diferentes expressões de choque de civilizações e o medo instilado face a hipotéticas ameaças protagonizadas por um “outro” que nos é apresentado como desumanizado, devem constituir outro eixo de alerta.
Finalmente, na metáfora do fogo, o papel dos que instigaram à selvajaria. Aparentemente dois protagonistas terão incendiado os lisboetas com apelos ao morticínio dos cristãos-novos. Quando perante elevadas cargas de combustível social – crise, desemprego, pobreza – e de comburente – diabolização de um qualquer “outro” – alguém lança uma chama, quase sempre se produz uma grande explosão. Foi isso que aconteceu, em 1506, na capital do reino e que custou a vida a milhares de pessoas. E que se pode reproduzir sempre que o triângulo do fogo social está completo. Por isso, vozes populistas, um pouco por toda a Europa, constituem um perigo sério enquanto incendiários sociais.
Ora, tal como na prevenção e combate ao fogo, urge uma atitude sensata de lutar contra a coexistência e potenciação destes três factores, no mesmo tempo/local. A prevenção faz-se, portanto, combatendo o preconceito que é comburente, a crise que é combustível e os argumentos dos incendiários. Antes que o incêndio comece.
Correio da Manhã, 18 Abril 2007
18 abril 2007
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