15 julho 2008

Ser Melhor

Portugal tem, ao longo da sua História, revelado capacidades inesperadas de vencer obstáculos aparentemente inultrapassáveis. Somos capazes de fazer o impossível, se a missão é grandiosa. O nosso problema não está aí. Para Portugal e para os portugueses, o desafio está na continuidade, no quotidiano, no aperfeiçoamento. Na banalidade dos pequenos pormenores. Na constância de uma determinação de ferro.

O Movimento Esperança Portugal (MEP), particularmente em tempo de crise, ambiciona para o nosso País um objectivo mobilizador, capaz de nos projectar para o futuro.

Propomos, assim, como objectivo para o Portugal do século XXI uma missão ao mesmo tempo simples e ambiciosa: Ser Melhor. Em tudo, sempre e independentemente das circunstâncias. Numa permanente competição connosco próprios, melhorando sustentadamente processos e resultados. É simples: Ser Melhor deveria ser a obsessão nacional.

Note-se que este objectivo é universal. Ao contrário do discurso da “excelência” que por natureza é elitista – nem todos podemos ser excelentes – e desresponsabiliza a maioria, a ambição de “Ser Melhor” não deixa ninguém de fora. Responsabiliza-nos a todos. Dirige-se a cada um de nós, enquanto profissional e enquanto cidadão. Mas também constitui um desafio às nossas instituições, públicas e privadas. Exige empresas melhores. Desafia para um Estado melhor.

Sem hesitações, Portugal precisa querer ser melhor, todos os dias.

Nesta aspiração a Ser Melhor, são fundamentais as culturas de planeamento, de execução e de avaliação. Necessitamos de cuidar do planeamento com empenho, deixando ao improviso só os verdadeiros imponderáveis. Precisamos de investir numa execução rigorosa e cuidada, eficaz e eficiente. Por exemplo, temos que fazer melhor, com menos dinheiro, pois as finanças públicas não suportam o aumento da despesa e também não é desejável, nem viável, o aumento da carga fiscal. Finalmente, ambicionamos uma avaliação permanente, capaz de se constituir como oportunidade de reconhecimento e de aprendizagem, de melhoria contínua e progressiva.

Mas também as atitudes contam. Sabemos que ninguém vence batalha alguma num quadro de desânimo ou desistência. Precisamos de cultivar atitudes que reflictam motivação, ambição e persistência. Necessitamos de motivar todos para este combate e ter a ambição firme de o vencer. Perante as dificuldades e os revezes que sempre existirão temos que saber persistir. Tentar tantas vezes quantas as necessárias para vencer. Estar disponível para correr maratonas e não ficar só pelos fogachos de 100 metros. Só assim chegaremos a destino que valha a pena.

“Melhor é possível” é o lema que defendemos para Portugal. Assumimos que está verdadeiramente ao nosso alcance um País melhor, porque mais humano e mais justo. Mas não só. Por estes dias, é também evidente que “Melhor” não só é possível, como necessário e urgente. É agora ou já.

(Público, 15.7.2008)

03 julho 2008

Fogo frio e silencioso

Como se já não chegasse, a avalanche de más notícias teve esta semana um dos factos mais perturbantes dos últimos meses. Atrevo-me a dizer, mesmo mais grave que os 143 dólares do petróleo ou a subida das taxas de juro. Sobre o país está a abater-se um fogo silencioso e imparável que destrói um património irrecuperável a curto prazo: o pinhal. A expansão da praga do nemátodo do pinheiro a todo o país, colocando em risco a extensa mancha de pinhal que constitui um activo fundamental (3% do PIB), não pode ser resolvida em poucos anos e causará um assinalável prejuízo à fileira florestal da economia portuguesa. As medidas de contenção na península de Setúbal, que foram tomadas tardiamente, não foram suficientes e agora o fogo frio e silencioso arde sem controle.

Como se responde a este facto com uma visão de esperança?

Este constitui o ponto fulcral. O primeiro ponto a sublinhar é que devemos aprender com este erro. Portugal precisa de cultivar, em todas as áreas, a prevenção como ferramenta mais barata para evitar catástrofes. Prevenir, deveria ser sempre um tema de agenda, sobretudo quando a ameaça ainda está longe ou inactiva. Neste caso, devemos rever todo o processo de combate ao nemátodo desde 1999 e perceber onde errámos para – pelo menos – aprendermos para a próxima e, eventualmente, responsabilizarmos os culpados.

Por outro lado, anuncia-se agora a vinda dos maiores especialistas mundiais, em Outubro – quando já deveriam ter vindo no início da crise – pelo que há que seguir rigorosamente as suas orientações para salvar o que é possível salvar. Seguramente será necessário abater as arvores doentes (e mesmo outras em zonas de contenção), bem como tratar convenientemente a madeira para evitar a contaminação para outras regiões dentro e fora de Portugal. Mas também é fundamental uma visão solidária de toda a comunidade para com os que são mais duramente atingidos por esta calamidade, através da atribuição e pagamento efectivo de um subsídio compensatório que possa minimizar os danos. Em simultâneo, é necessário apostar imediatamente na reflorestação com outras espécies, compatíveis com os solos e o clima, para ter um nível de substituição florestal razoável.

Portugal não precisava de mais este problema. Mas se o temos, há que o enfrentar com determinação.

14 junho 2008

Contra o medo

Nas últimas semanas, no quadro da minha intervenção cívica e política, tenho percorrido o País, para falar de política da esperança. De como é possível ultrapassar os inúmeros obstáculos que temos pela frente, se juntos nisso nos empenharmos, dando o melhor de nós próprios. Se arregaçarmos as mangas e deitarmos mãos à obra. É óbvio que esta tarefa é particularmente difícil nestes dias, em que se acumulam as más notícias e as nuvens negras sobre o horizonte se vão acumulando. Mas, mais do que nunca, é fundamental. Sem esperança, afundamo-nos.

Por entre a riqueza desta experiência, onde nos vamos cruzando com um país real cheio de potencialidades, mas também amarrado por vários bloqueios, vou anotando muitas esperanças e algumas preocupações. Entre estas, destaca-se o medo omnipresente. Sim, o medo. Nunca imaginei que trinta e quatro anos depois da festa da liberdade, tanta gente vivesse tolhida pelo medo. Medo de tudo e medo de nada. Do chefe, do presidente da câmara, do Estado, do SIS, da ASAE, do fisco, enfim, de tudo o que mexe. Medo de represálias, de vinganças, de negócios perdidos, de oportunidades goradas. Medo de falar ao telefone e ser escutado, medo de servir alheiras e ser multado. Medo atrás de medo. Este é um medo que nos paralisa; um medo que nos descaracteriza. Curiosamente, esta expressão é inversamente proporcional à dimensão do sítio – quanto mais pequeno o lugar, mais evidente o medo – e directamente proporcional à formação dos visados – quanto mais diferenciada a pessoa, maior o medo.

Ficou famoso o discurso, há mais de um ano, na sessão comemorativa do 25 de Abril, que o Deputado Paulo Castro Rangel proferiu na Assembleia da República, clamando contra a claustrofobia democrática. Hoje, concordo mais com a sua preocupação, do que nessa altura. É urgente reagir contra o medo. Mas a primeira e decisiva reacção passa, não tanto por acusar este ou aquele protagonista, mas por termos consciência de que quem não reage contra o medo, acaba seu prisioneiro. Mais: alimenta-o e vai aumentado o seu domínio, até que o medo se torna senhor absoluto. Ao contrário, quem reage contra o medo, sacode-o e fá-lo recuar. Quase sempre, quem gera medo é cobarde quando enfrentado. Por isso, os portugueses precisam de reencontrar coragem para levantar a cabeça e não se deixarem atemorizar. A nossa liberdade – política, religiosa, cultural - não pode ser fechada numa caixa, que ainda que tenha paredes invisíveis, não deixa de ser profundamente claustrofóbica.

Fogo cerrado

Portugal tem, é sabido, uma sociedade civil frágil. Fruto de séculos de centralismo estatal, de uma cultura de dependência dos poderes públicos e de uma aversão ao empreendedorismo social, estamos muito longe do nível desejável de pujança das instituições da sociedade civil. O terceiro sector – o que não é público, nem privado com fins lucrativos – tem que se reforçar em Portugal. Sabemos, a propósito, que os países mais desenvolvidos o são, não só pela competitividade das suas economias, mas pela força das suas comunidades e pelo empenho cívico das suas populações. É para esse modelo que devemos mover-nos: uma sociedade civil cada vez mais forte.

Ainda assim, em Portugal, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), incluindo as Misericórdias, representam mais de quatro mil instituições, com 270.000 funcionários e mobilizam 4,2% do PIB. Garantem o essencial dos serviços sociais de apoio à infância e à terceira idade. Constituem uma realidade essencial na sociedade portuguesa. Por isso, todos os esforços para as reforçar são fundamentais e todos os ataques a este tecido social constituem um erro crasso, quer porque não tendo nós uma sociedade civil forte, atacar o que temos é um disparate, quer porque damos um sinal errado, optando pela intervenção do Estado em vez de preferir o Terceiro Sector.

Infelizmente, os sinais mais recentes são preocupantes. Numa visão estratégica errada, as IPSS têm vindo a estar sob fogo cerrado. Ora é a ameaça aos ATL para crianças que durante anos estas instituições desenvolveram e que ficaram em risco pela iniciativa do Ministério da Educação ao “estatizar” a escola a tempo inteiro; ora é a ameaça da ASAE com a sua lógica insensata e a desadequada interpretação fundamentalista das leis comunitárias que cai em cima das IPSS; ora é o Ministério da Saúde que ignora o contributo que as Misericórdias poderiam dar para a resolução das listas de espera em Oftalmologia. São evidências excessivas, para considerar que se trata de coincidências. Há um ataque cerrado em curso.

Dessa forma se compreende como reacção que se assista ao agendamento de várias formas de protesto, entre as quais uma greve – inédita – nos ATL e uma manifestação em Lisboa. A sua causa merece todo o nosso apoio. Matar, ou colocar em risco sério, as IPSS constitui um erro político com danos efectivos para o País. É necessário inverter o caminho.

Natureza humana

Num tempo conturbado, atravessado por novas erupções do denominado “choque de civilizações”, onde se redesenha o mundo em função de previsíveis colisões de culturas e religiões, constitui um desafio regressar a outros passados, tão diferentes na forma, quanto iguais na essência. Terão os choques de civilizações no passado acontecido pelo conflito gerado pelas diferenças?

Nesse olhar pela História, à procura de outros “choques de civilizações”, surge como momento referencial o chamado “século cristão do Japão”, especialmente no seu epílogo, já em pleno séc. XVII. Camões, sintetizava assim esse destino então abraçado: “É Japão onde nasce a prata fina / que será ilustrada com a Lei divina”. Na abertura aos “bárbaros do sul”, esses portugueses intrépidos da era dos Descobrimentos, o Japão feudal descobriu, acolheu e, finalmente, rejeitou violentamente uma ponte entre dois mundos quase opostos que, por décadas, se interligaram.

Luís de Fróis, na época, ilustrava sistematicamente 609 exemplos de diferenças – “nós usamos do preto por dó; e os japões do branco” - no comportamento dos homens, das mulheres ou das crianças, das armas e da guerra, da arte e da alimentação, da religião e da literatura. Mais do que nos antípodas do globo, coloca a Europa e o Japão nos extremos opostos das tradições e dos costumes. E, no entanto, estas duas civilizações conviveram pacificamente ao longo de quase um século.

O momento crítico de tensão e de desencontro aconteceu quando se colocou a questão do poder. Quando os japoneses tiveram a notícia do que havia acontecido nas Filipinas, onde também tinham chegado os europeus. Aí, depois de uma primeira entrada pacífica pela religião e pelo comércio, os estrangeiros vieram a conquistar o poder, pela força, dominando os autóctones. Temendo que o mesmo lhes viesse a acontecer, os japoneses decidiram expulsar violentamente os portugueses e aquilo que eles representavam: o cristianismo.

Ora, o que tem isto a ver com os nossos dias? É simples. Os nossos conflitos nascem porque somos todos iguais. Porque partilhamos sentimentos como a ambição, a conquista, o domínio, a glória, a transformação do outro em alguém igual a nós. É próprio da natureza humana. Por isso não nos deixemos iludir por discursos que colocam nas diferenças a razão de ser dos conflitos de civilizações. O problema é efectivamente... a semelhança.

O nó górdio

A discussão em torno das alterações às relações laborais está na ordem do dia. As propostas avançadas pelo Governo e em debate na concertação social vão no bom caminho, mas não tocam ainda numa questão essencial.

Portugal enfrenta um enorme desafio de adequar a sua economia à dinâmica da competição global. Nessa dinâmica, se, por um lado, não deve abdicar de um Estado social e da protecção do emprego, também não pode ignorar que para sobreviver não pode manter a situação existente, repartida entre emprego eterno ou precariedade absoluta. Este é um nó górdio.

Em grande medida, temos em Portugal uma situação extremada onde parte dos trabalhadores estão completamente vulneráveis, num precariedade total, seja através dos falsos recibos verdes, seja mesmo pelo trabalho clandestino, enquanto outra parte tem tais garantias que jamais poderá ser dispensado do seu emprego. Uns têm de menos o que outros têm de mais.

Quanto aos precários, cuja revolta se começa a evidenciar, a inexistência de garantias mínimas, seja na doença ou no desemprego, bem como a total e permanente vulnerabilidade, torna a sua vida numa angústia permanente. O futuro fica suspenso e os direitos são uma miragem. Em relação aos outros, os “efectivos”, nem que caia “o Carmo e a Trindade” alguma coisa acontecerá. Ironicamente, ao mesmo tempo que se quer afirmar que o casamento não é eterno, tornando o divórcio fácil e acessível, aceita-se manter o princípio da eternidade de um contrato de trabalho. Dá que pensar.

A bem da solidariedade entre trabalhadores – para que os que têm de mais possam ceder algo aos que têm de menos - e da competitividade das nossas empresas, deveríamos estar disponíveis para alterar esta realidade, equilibrando direitos e deveres, segurança e risco. Deveríamos introduzir nas relações laborais, um combate simultâneo à precariedade e à rigidez no emprego.

Ganharíamos todos se ninguém estivesse isento de poder ser dispensado do seu emprego, com uma justa indemnização que poderia corresponder, por exemplo, a três ou quatro salários por cada ano de trabalho. Essa indemnização corresponderia a um “seguro de desemprego” que permitiria “respirar” enquanto se procura novo emprego. Em caso de insucesso recorrente no encontro de um novo emprego, então continuariam a funcionar os mecanismos de solidariedade social, através da intervenção do Estado social. Desta forma, convivendo com a possibilidade de dispensa com indemnização, os empregadores teriam muito menos hesitações na contratação e, naturalmente, existiria muito mais emprego formal. Por outro lado, para os trabalhadores, o quadro do um mercado de emprego dinâmico, com natural geração de mais oportunidades, constituiria sempre uma vantagem. Em simultâneo, haveria condições para que, desde o primeiro dia, todos os trabalhadores tivessem um contrato de trabalho sem termo certo, riscando do mapa os formatos de trabalho sem direitos sociais.

06 maio 2008

O serviço do Estado

Sucessivos governos têm agendado a questão da reforma do Estado e procurado - com elevado insucesso, diga-se - transformar aquele gigante em algo de sensato e funcional. Sendo uma batalha ciclópica, nunca vencida, a renovação da missão do Estado deve ocupar lugar cimeiro em qualquer proposta política. Mas que princípios devem orientar essa missão?

Desde logo, é fundamental ter claro que a reforma do Estado não tem a ver com a simples reorganização dos seus serviços. Essa é a primeira tentação. Mas não leva longe. Na sua essência, esta reforma é, acima de tudo, cultural e de mentalidades. Sem começar por aí, toda a energia se dissipa sem resultado. Há que investir numa nova atitude de um Estado que só existe para servir o cidadão e a comunidade. A sua legitimidade decorre directamente dessa natureza. É fundamental recuperar a centralidade do conceito de “serviço” na acção do Estado.

A verdadeira reforma passa pois, por transformar cada agente do Estado num verdadeiro servidor da causa pública e dos seus concidadãos. Por isso, na sua interface com o cidadão, o Estado e os seus agentes devem organizar-se em função das necessidades da comunidade e das pessoas. De uma forma clara, há que assumir, por exemplo, que o Sistema Nacional de Saúde só existe para servir doentes, ou as Escolas para formarem estudantes, ou as repartições públicas para resolverem problemas de todos nós. Esta cultura de centragem do Estado no cidadão é um enorme desafio.

Um dos mecanismos mais úteis para esse desígnio passa pela permanente avaliação da qualidade dos serviços públicos, na óptica do cidadão-cliente. Para a concretização desse objectivo, deveria ser obrigatório após cada atendimento, o cidadão deixar a sua avaliação e esta ter consequências. Uma utilização muito mais regular dos Livros Amarelos, das caixas de sugestões e dos estudos qualitativos sobre a opinião dos utentes poderiam ser instrumentos que corporizassem esse objectivo.

Também seria um grande avanço, cada serviço público ter um Provedor do utente, permanentemente disponível para ouvir as críticas e agir em conformidade, na transformação dos procedimentos desse serviço em função de um melhor atendimento e de uma mais eficaz resolução de problemas. Esse investimento, já realizado em algumas instituições, representaria um ganho significativo não só na qualidade do serviço, mas também no combate ao desperdício de recursos – como a perda de tempo – tornando mais eficiente todo o sistema.

Uma outra medida convergente passaria pela inclusão obrigatória, no plano de actividades e no orçamento de cada serviço público, de uma linha de acção e respectivos meios financeiros, para melhoria da qualidade dos serviços prestados. A medida da relevância de uma prioridade vê-se, normalmente, nos meios que lhe são atribuídos. E é para este objectivo que devem, em primeiro lugar, ser direccionados os recursos existentes.

Melhor Democracia

No final desta semana teremos, uma vez mais, a comemoração do Dia da Liberdade, trinta e quatro anos depois da instauração de um regime democrático em Portugal. A efeméride deve constituir uma oportunidade para reflectirmos sobre a qualidade da nossa democracia.

Independentemente dos avanços obtidos ao longo destes trinta anos, a democracia portuguesa vive hoje um tempo de crise que deve ser visto, sobretudo, como um desafio ao seu aperfeiçoamento e fortalecimento. De entre as suas várias dimensões poderemos identificar dois eixos prioritários: a recuperação do interesse dos cidadãos pela política e a dignificação da actividade política.

Precisamos, primeiro que tudo, de inverter o desinteresse e a desconfiança evidenciados pelos cidadãos face à política, com o consequente afastamento da vida democrática. Desde logo, necessitamos de uma democracia mais participativa, onde os cidadãos se sintam com espaço, poder e voz activa, para além do voto de quatro em quatro anos. Isso pode começar, por exemplo, pelo maior poder na decisão do destino dos impostos, aumentando a parcela decidida por cada contribuinte. Outra aposta pode passar pela abertura à iniciativa legislativa de cidadãos, em condições mais acessíveis que as actuais. Por outro lado ainda, é necessário afirmar que mais do que um direito, há um dever de participação política, que deve começar pela redução da abstenção, devendo mesmo ser ponderado o voto obrigatório. Poderíamos ainda acrescentar a importância de um modelo de educação para a cidadania, que no sistema educativo pudesse contribuir para uma consciencialização da relevância da cidadania política.

Mas, não podemos ignorar que o fortalecimento da democracia passa também por algumas alterações na actividade política. Em Portugal, foram apenas 7% os inquiridos que afirmaram ter confiança nos políticos, contra 10% na Europa. É a actividade mais desconsiderada entre todas as estudadas.

Que poderia ser feito para alterar este cenário? Para começar, um passo essencial passa por abandonarmos o preconceito e os estereótipos face aos políticos. Se é verdade que existem maus exemplos – como em todos os sectores – muitos são um bom exemplo no serviço à causa pública. Há que ser justo e não se deixar conduzir por um populismo bacoco. Mas só esse gesto de boa vontade não chega. Os políticos devem mostrar inequivocamente a sua vocação de serviço ao bem comum, independentemente dos jogos de poder. Para isso ajuda a recusa do modelo de “políticos profissionais”, em benefício do exercício de cargos políticos em regime de “comissão de serviço”, por um tempo limitado. Por outro lado, as remunerações dos políticos deveriam ser exactamente iguais às que tinham antes do exercício de funções políticas, tornando o factor salário irrelevante para a decisão de serviço á comunidade.

A democracia pode ser melhor. Se quer ter futuro, precisa mesmo de ser melhor.

Inevitável

Ao fim de meses e meses de conflito aberto e de hostilidade acesa, o Ministério da Educação e os sindicatos dos professores chegaram a acordo – pelo menos, aparente - quanto ao processo de avaliação. A arrogância e o radicalismo, de uma parte e de outra, tiveram que dar lugar à negociação e ao entendimento, pois este é sempre o único caminho que permite desbloquear estas situações. Era, pois, inevitável que assim acontecesse, sendo só uma questão de tempo e de protagonistas. Sobretudo depois da grande manifestação dos professores, tornou-se evidente que o Ministério da Educação tinha que rever a sua posição. Por outro lado, a sustentabilidade da luta dos professores exigia aos sindicatos que alguma vitória fosse alcançada. E se a demissão da equipa da Educação foi ficando fora de alcance, um acordo que desse vencimento a algumas das teses dos sindicatos poderia ser a saída airosa. E assim parece ter sido.

Pena é que se tivesse demorado uma eternidade e que, pelo meio, se tenham deixado um conjunto de feridas que demorarão muito a ser esquecidas e que podem mesmo vir a pôr em causa este acordo alcançado. Não teria sido possível – e desejável – ter chegado a acordo há alguns meses atrás, sem danos colaterais e com tempo poupado? Não podia o Ministério ter começado por aqui? Não era preferível ter chegado a este momento de consenso pelo seu próprio pé, em vez de ser arrastado pelos acontecimentos? A resposta parece óbvia.

Este episódio revela, de uma forma clara, como nos nossos dias só é possível avançar através da construção de pontes e da geração de consensos. Apesar de muitos criticarem esta via do diálogo, associando-lhe um estigma de fraqueza, de indefinição e de falta de convicções, é a única opção que permite, numa sociedade democrática, consolidar reformas. Dito de outra forma, não chega ter o poder de uma maioria absoluta. Aquele pode ser necessário mas não é suficiente. A legitimidade democrática que o voto popular concede não resolve tudo. A ela deve somar-se uma capacidade de gerar consensos, de mobilizar os protagonistas relevantes e de chegar a soluções sustentáveis que se enraízam profundamente na sociedade e não são levadas pela primeira ventania.

Num mundo plural e fragmentado, que não obedece por decreto, nem funciona por automatismo, é necessário ter a lucidez de procurar construir pontes. De a todos fazer participar na construção das soluções para os problemas que enfrentamos. Ainda que demore mais e que se avance por pequenos passos, só assim se darão passos seguros. Só com o cimento das vitórias comuns, as soluções ganharão a consistência de betão. E só adquiriremos um nível elevado de co-responsabilidade, quando todos nos sentirmos parte da solução e responsáveis pelos resultados. E isso só se alcança dialogando. É inevitável.

Deixar para trás

Sou de uma geração que já não viveu a Guerra colonial. Não tenho, por um lado, experiências traumáticas de familiares que por terras de África tivessem perecido nem, por outro lado, à minha volta se viveram radicalismos ideológicos de qualquer cor, na discussão sobre as razões de ser desse tempo. Talvez por isso, benefício – creio - de alguma distância crítica em relação ao tema dos ex-combatentes e, porventura, um olhar desapaixonado que permite maior objectividade.

E que se vê, desse posto de observação? Acima de tudo, descobre-se esquecimento que é das formas mais duras da injustiça. Emerge, então, uma sensação de desconforto pela forma como, enquanto comunidade e País, nos portámos em relação a estes homens. Chega mesmo a tocar a vergonha.

Muitos dos ex-combatentes e suas famílias pagam ainda hoje uma factura muito elevada, no corpo e na mente, em consequência dessa experiência difícil. Os fantasmas da guerra não os deixam descansar. E enquanto sofrem o peso dessa herança, não sentem dos seus compatriotas e do Estado que serviram, um reconhecimento suficientemente condigno, sem aproveitamento ideológico, com o respeito que merecem.

E onde radica parte dessa falta de respeito? Em grande medida, na confusão lamentável entre o julgamento ideológico de um regime político e a condenação ao esquecimento dos que, sem dolo, serviram debaixo de uma bandeira. Não há erro maior.

Quem combateu nas ex-colónias portuguesas - na sua esmagadora maioria - não o fez de livre vontade. À alternativa da deserção, muitos entenderam dizer não, por considerarem ser uma traição aos seus. Outros, mais prosaicamente, não conseguiram partir para o exílio a tempo. Restou-lhes então receber a guia de marcha e partir para o mato, passando a experimentar “aquele inferno de matar ou morrer”.

Aqueles que combateram nas guerras coloniais, fizeram-no ao serviço do seu País, com maior ou menor convicção, executando uma política da qual não eram autores nem co-responsáveis. Não será necessário recordar que não vivíamos em democracia e a formulação da decisão política não resultava da voz do povo. Salvo eventuais autores de crimes de guerra, cometidos nesses anos, e que mereceriam o julgamento que a própria disciplina militar prevê, os ex-combatentes são, acima de tudo, cidadãos portugueses que obedeceram, com risco de vida, a um desígnio político do regime vigente. Foram servidores do País e assim devem ser tratados. Sem subterfúgios, nem equívocos.

O gesto de reconhecimento aos ex-combatentes, não equivale, como alguns gostariam, a branquear os erros do regime anterior, a apelar a um saudosismo bacoco ou a ir mais longe para territórios racistas e neo-colonialistas. Nada disso. Trata-se somente de não abandonar os nossos homens, sobretudo depois do combate. De não os deixar desaparecer na névoa do esquecimento. Um povo digno não os deixaria para trás.

07 abril 2008

O erro do IVA

No final da semana passada, o Governo anunciou a redução do IVA em um ponto percentual. Deixando de lado, por agora, a crítica da eventual inspiração decorrente do calendário eleitoral, que os portugueses saberão julgar, importa reflectir sobre a bondade da decisão. Ancorada esta decisão no facto de se terem cumprido os objectivos para 2007 do controle do défice – facto que nunca é de mais saudar – evidencia, porém, uma visão errada de prioridades e, sobretudo, uma fraca sensibilidade social.

Comecemos por aqui. A redução do IVA, beneficia o consumo, com particular impacto para quem consome mais. As famílias pobres, porque consomem pouco, em praticamente nada sentirão o benefício desta redução de imposto. Ao invés, famílias de maiores recursos financeiros e com níveis mais elevados de consumo verão mais os efeitos deste benefício. Por isso, a nosso ver, esta opção é injusta porque não indexa os benefícios da redução de impostos à maior necessidade dos mais vulneráveis.

Se Portugal tem hoje condições para reduzir a enorme pressão de impostos que tem sido colocada sobre os contribuintes – e ainda bem que tem – deveria aproveitar essa folga para repor mais justiça social. Para reequilibrar o enorme fosso que se tem agravado entre mais ricos e mais pobres e que é o maior de toda a Europa. Ou seja, deveria usar os supostos 500 milhões de Euros da receita anual do IVA, correspondentes a um ponto percentual, que o Governo entendeu serem dispensáveis, para apoiar os que sentiram a maior factura da crise. Seria mais um esforço que todos faríamos, como fizemos para a redução do défice, mas agora com um sentido solidário muito mais forte.

Com esse valor, o Governo poderia duplicar o Complemento Solidário para os Idosos e apoiar mais 60.000 idosos pobres, para quem este apoio financeiro quer dizer imenso. Poderia duplicar o investimento no apoio a crianças e jovens em risco, quer dotando as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, de recursos mais significativos para poderem efectivamente cumprir as suas missões, quer acelerando a construção de equipamentos, para proporcionar educação pré-escolar nos contextos mais vulneráveis, a todas as crianças a partir dos 3 anos, ou ainda aumentar a majoração do abono de família para famílias numerosas. Poderia ainda dar um impulso decisivo para acabar com as barracas, apoiando as famílias mais pobres a encontrarem uma solução de habitação condigna. Ou poderia ainda rever os escalões do IRS, beneficiando os contribuintes com menores rendimentos. Mas não foi este o caminho escolhido. E foi pena.

Os últimos anos, foram tempos difíceis para os portugueses. Por isso, as dificuldades sentidas por quase dois milhões de portugueses, abaixo do limiar da pobreza, deveriam constituir a primeira prioridade do Estado, na sua função de redistribuição da riqueza, de promoção da justiça social e de maior justiça fiscal. Não podemos deixar para amanhã o que temos para fazer hoje.

Um desígnio para Portugal

Sucessivamente, ao longo dos tempos, procurámos um desígnio para Portugal. Algo que fizesse sentido e nos mobilizasse para andar para a frente. Nas décadas anteriores, tivemos a consolidação da democracia, a adesão à CEE e a entrada no Euro que nos obrigaram a lutar por objectivos concretos. Todos eles foram alcançados, na generalidade, ainda que de uma forma imperfeita e deixando ainda desafios para concretizar. E, agora, que desígnio para Portugal?

Portugal precisa de Ser. Ser melhor. Ser coeso. Ser global.

Um Povo deve, antes de tudo, Ser. Ser portador de uma identidade forte que se consolida ao longo dos séculos e de um código genético que ganha densidade com o tempo. Que se reconhece – com orgulho - como original e que recusa imitações baratas. Para Portugal ser, é fundamental que os portugueses não tenham vergonha de si próprios, nem vivam permanentemente a desfazer-se. Para Portugal ser, é necessário cuidar da memória, para construir um futuro com carácter. Para Portugal ser, é urgente valorizar a Língua e proteger o Território.

Mas não chega ser. Isso é só o princípio. Há que Ser melhor. Sempre. Em tudo e envolvendo todos. Um enorme desígnio para os portugueses é cultivar o aperfeiçoamento em cada gesto. Porque tudo o que vale a pena ser feito, vale a pena ser perfeito. Como um atleta que vai melhorando as suas marcas, um futebolista que vai afinando a execução dos livres, ou um músico que ensaia sem cessar para aperfeiçoar a sua técnica. Precisamos de ser melhores, nas pequenas e grandes coisas. Como uma obsessão. Sempre melhor, com um passo cada dia. Cada um de nós, pode definir em quê, como e para quê. Se fosse possível que cada português integrasse esta ambição na sua agenda, o País daria um salto extraordinário.

Outra face do novo desígnio para Portugal é Ser coeso. Como comunidade, devemos avançar sem perder ninguém, nem deixar ninguém de fora. Há que reduzir o fosso entre mais ricos e os mais pobres, numa sociedade mais justa e, por isso, mais coesa. Precisamos de cultivar os laços que nos unem. De aumentar o nosso capital social, de ter mais confiança nos outros e no País. Antes de procurarmos o que nos separa, precisamos de construir a partir do que nos une.

Finalmente, Ser global. Somo um povo, no dizer de Vieira, a quem Deus deu Portugal para nascer e o mundo para morrer. Precisamos de redescobrir os caminhos do mundo. Sentirmo-nos bem nas arenas internacionais. Sermos capazes de dialogar com desconhecidos, de nos radicarmos em qualquer parte do planeta, de nos tornarmos próximos. Precisamos saber comerciar com eficácia e aprender, além fronteiras, com dedicação.

Olhando para mais de oito séculos de sucessos e insucessos, tantas vezes capaz de ir à Índia, mas por vezes incapaz de chegar a Cacilhas, importa a todos mobilizar, sem excepção, para as novas Índias e para as Cacilhas de sempre.

23 março 2008

Sacrifício

Poucos conceitos estarão tão fora de moda como o sacrifício. Imersos num tempo onde a regra é o prazer e a medida, a remuneração imediata, falar de qualquer grama de sacrifício parece um disparate.

As últimas décadas para Portugal, apesar das dificuldades ainda existentes, foram um tempo de grande crescimento económico, em que faixas crescentes da nossa população ascenderam a um nível de vida que não tinham. Afastamo-nos do tempo de escassez e progressivamente abrimos as portas à abundância. E num gesto generoso de facilitar aos nossos filhos uma vida melhor que a dos nossos antepassados, fomos alisando o caminho. O efeito perverso foi a criação de uma “geração bife do lombo”, no dizer de alguém. Poucos habituados à adversidade e à secura, mais talhados para a facilidade das planícies do que para a escalada de montanhas, muitos de nós damo-nos mal com a dureza da vida. Parece que nos esquecemos que “Deus dá as nozes, mas não as parte”. Sofremos com tempos de seca em que é preciso viver sem a frescura das águas correntes. Falta-nos o músculo que se adquire com o esforço e com o sacrifício.

Mas, no nosso íntimo, todos sabemos que a vida é feita, antes de tudo, de esforço e de trabalho. Ainda que nos vendam uma qualquer outra miragem, acabamos sempre por nos confrontar com essa realidade. Ninguém, que seja honesto, colhe antes do esforço de semear. O sabor da vitória vem depois do suor do trabalho. Ora, o problema é que na nossa sociedade instantânea, feita de já e de agora, não temos paciência para esperar. Ou queremos mesmo fruto sem esforço.

Mas há ainda uma outra dimensão do sacrifício que importa cultivar: a dádiva gratuita e sem retorno, no silêncio dos gestos discretos. A capacidade de dar um sentido não instrumental a um gesto de solidariedade, oferecendo-lhe a dignidade e o alcance que vai para além das medições mais banais. O ter menos - “tempo” ou “dinheiro” - para que alguém tenha um pouco mais.

Tenho tido a sorte de me cruzar com pessoas que são excelentes exemplos desta forma de sacrifício que, neste caso, tem outro significado. Já não se trata de uma definição comum de sacrifício enquanto esforço, enquanto remuneração diferida no tempo, mas sim da definição mais profunda de sacrifício enquanto “dádiva de algo que se torna sagrado”. Aquelas dádivas tornam-se sagradas.

Neste semana tão importante para os cristãos, vale a pena partilhar este sentido do Sacrifício, de tornar sagrada uma dádiva. De se descentrar de si, por algo ou por alguém. De fazer o verdadeiro sacrifício como Aquele que morreu na Cruz há 2000 anos.

D. Estefânia

Nos últimos seis meses, por duas vezes, fui à Urgência do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, com as minhas filhas. E que encontrei? Um caos? Uma vergonha? Ora, importa relatar o que encontrei. Num País habituado a reparar sempre no que corre mal, no caso marcado pela incompetência, desleixo e falta de empenho, é essencial contar a experiência que vivi.

Nas duas vezes – estatisticamente relevante, para além da sorte ou do acaso - vi um serviço de Urgência a trabalhar com enorme qualidade e competência. Com organização e método, simpatia e dedicação, toda a equipa com que me cruzei, desde o pessoal administrativo, às médicas e enfermeiras, parecia sintonizado num padrão de qualidade que o nosso olhar pessimista não esperaria num Hospital português. A realidade é muito melhor que a nossa expectativa.

Apesar de não beneficiarem de um espaço moderno e confortável, pois o Hospital acusa já o peso da idade, aqueles profissionais dão o seu melhor, no contexto que têm. Por exemplo, nalguns gabinetes médicos, são obrigados a atenderem dois doentes em simultâneo. Mas até isso reflecte uma atitude centrada no utente, visando reduzir os tempos de espera, em desfavor do seu conforto do ambiente de trabalho. Nos pequenos detalhes também marcam pontos. A pensar nos utentes, as indicações nas paredes, com cores, orientam-nos até cada serviço e nas salas de espera da radiologia ou do laboratório de análises, as pinturas infantis aliviam a tensão de estar num hospital.

Quis trazer esta experiência de utente da urgência do D. Estefânia para sinalizar vários traços que deveriam ser inspiradores para enfrentarmos os desafios que temos pela frente.

O primeiro traço é elementar, mas sistematicamente maltratado: Nós somos capazes. Simplesmente isso. Somos capazes. De nos organizarmos, de sermos acolhedores nos serviços públicos, de nos centrarmos no utentes, de imaginar soluções para além do estabelecido. Os portugueses são tão competentes como os melhores. Na administração pública, como nas IPSS, ou nas empresas. Somos capazes.

O segundo traço passa por afirmar que podemos sempre fazer melhor com o que temos. Se temos um limão, façamos uma limonada, mas façamos. Não nos queixemos de não ter laranjas, para fazer laranjada. Mesmo dos recursos mais escassos é possível tirar mais valias e não ficar à espera das condições extraordinárias para fazer sempre melhor.

Terceira ideia: Todos somos importantes. Do segurança, ao funcionário administrativo, à médica, à senhora da limpeza... o sucesso das organizações depende de todas as suas parcelas cumprirem o seu papel. Ninguém está dispensado de fazer a sua parte.

Finalmente, todos nós precisamos de reeducar o nosso olhar. Precisamos de desocultar a realidade e ver o muito de bom que temos. Só assim ganharemos força para os desafios que nos faltam vencer.

O Império do hoje

Vivemos enclausurados no presente. É como se não tivéssemos passado, nem futuro. Sob a ditadura do instantâneo, debaixo da imposição da velocidade e limitados pelos ciclos curtos, vivemos já e agora. Depois logo se vê.

Quais são as consequências deste desígnio de vida? Onde nos leva esta “absolutização” do presente? Que sentido profundo para quem só conhece o imediato?

Desde logo, uma sociedade assim ignora os mais velhos. Coloca-os à margem e dispensa a sua memória. Acha-os um empecilho porque lhe lembra o passado desinteressante e deprecia-os porque são pouco produtivos na lógica do hoje. Atribui-lhes gavetas douradas, onde não devem incomodar. Permite-lhes que durem, mas não que existam verdadeiramente. Ficam pois impedidos de ser cidadãos plenos, e de nos trazer essa preciosa memória do passado, que nos ajudaria a entender o presente.

É bom não esquecer que quem ignora o passado, não aprende. Perde a densidade da experiência, a sabedoria que a tradição dos séculos nos traz. Ao cortar com o ciclo das gerações, que vão passando de mão em mão o testemunho da humanidade, dissipa-se o valor acrescentado da civilização. Esquece-se a natureza humana e ignora-se, por um lado, as suas fragilidades e, por outro, as suas potencialidades.

Precisamos de cultivar a memória do passado, sem saudosismos, nem alienações. E, para isso, necessitamos de recriar uma cidadania sénior, através da qual os mais velhos se sintam também construtores do presente. Com dignidade e valor acrescentado.

Mas há um outro lado da moeda deste império. Quem vive para o hoje, também ignora o amanhã. Não poupa, nem planta. Só desfruta. Desresponsabiliza-se da preservação dos recursos naturais e deixa o planeta aquecer. Demite-se de transmitir valores e tradições aos que nos sucedem, no pressuposto de não vale a pena. Não tem paciência, nem persistência. Não é capaz de diferir remunerações, nem de as emprestar ao futuro. Quer tudo para si e já.

Paradoxalmente, apesar de um discurso e de uma aparente prática de valorização das crianças e dos jovens, os escravos do hoje não são verdadeiramente solidários com as novas gerações. Se o fossem, agiriam diferentemente.

Temos, por isso, perante nós um enorme desafio de cultivar a solidariedade intergeracional. De reforçar uma cadeia, onde tudo se liga e na qual somos responsáveis não só pela gestão do presente, mas também por continuar o passado e viabilizar o futuro. A História não começou connosco, nem tão pouco irá acabar connosco. Por isso o império do hoje é mais uma armadilha a evitar.

Poder Escolher

Saiu na passada segunda-feira um relatório da União Europeia sobre o risco de pobreza infantil que gerou justificadas preocupações. Ainda que se refira a dados de 2005 e que desde aí se tenham registado alguns progressos, o documento aponta para 24% de crianças expostas ao risco de pobreza. É um murro no estômago. Com agregados familiares marcados pelo desemprego e pela baixa escolaridade dos pais, muitas destas crianças parecem ter o destino traçado à nascença. A probabilidade de virem a perpetuar o ciclo da pobreza, dispondo de um (quase) grau zero de liberdade para uma vida diferente, é muito elevado. E a maior pobreza é nascer prisioneiro de uma sina.

Se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, o Homem nasceu para ser livre. Ao vivermos permanentemente em contexto de escolhas, é a capacidade de as fazer livre e responsavelmente que nos torna, em grande medida, senhores do nosso destino e, por isso, seres livres.

O problema é que, para aquelas crianças, as escolhas são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, muitas vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade.

Com efeito, demasiadas crianças e inúmeros jovens vivem em contextos que lhes limitam as escolhas presentes e determinam prisões futuras: as crianças que vivem “fechadas na rua”; os que têm as suas famílias desestruturadas; as que vivem embebidas em violência; os que ficam fora da Escola cedo demais; as que nunca poderão começar a corrida em igualdade de circunstâncias... Que podem escolher estas crianças e jovens? Têm escolha possível?

Sublinhe-se, no entanto, que é para muitas destas crianças que vários protagonistas – Escolas, IPSS, Programa Escolhas, Programa Eliminação do Trabalho infantil... – vão dando o seu melhor, em prol da inclusão social e da construção de uma vida diferente. Nas suas múltiplas actividades, técnicos e instituições procuram aumentar os seus graus de liberdade, ajudando a alargar as escolhas possíveis. E é bom termos consciência que muito já se andou e melhorou, apesar dos imensos desafios que ainda temos pela frente. Mas há que continuar.

Devemos a estas crianças um futuro onde esteja ao seu alcance a possibilidade de escapar à pobreza onde nasceram. Só então, o seu futuro estará nas suas mãos e por ele serão responsáveis. Mas, antes...temos nós que cumprir a nossa responsabilidade.

20 fevereiro 2008

Dilema no Kosovo

Que bom seria se nos momentos de decisão na vida tudo fosse preto ou branco. Que o mal se separasse do bem por uma linha visível e clara, onde não fosse difícil perceber as fronteiras nem muito menos que lado escolher. Mas não é assim. Na maioria das vezes ficamos perante dilemas de escolha difícil em que há, frequentemente, que escolher entre dois bens ou entre dois males. Acresce que a fronteira não surge como uma linha clara mas um espaço difuso. Ter clarividência suficiente para saber gerir os dilemas e escolher bem é, na política como na vida, um desafio sempre presente. Só que não é nada fácil.

Vem isto a propósito da recente declaração unilateral de independência da província sérvia do Kosovo. De um lado, o inquestionável direito dos povos à autodeterminação, expresso claramente na Carta das Nações Unidas e que no caso do Kosovo teve na declaração de domingo passado um apoio esmagador no seu parlamento. Parece não haver dúvidas de que a maioria dos kosovares quer ser independente. Mas, por outro lado, há a instabilidade que irá ser criada numa zona já por si efervescente, a oposição determinada da Sérvia, fortemente apoiada pela Rússia, e os ressentimentos que se gerarão. Esse passivo faz evidenciar um preço altíssimo a pagar por esta decisão – pelos kosovares mas também pelos seus vizinhos e, eventualmente, por nós todos – de tal forma que se questiona se faria sentido avançar já para a independência do Kosovo.

Temos, portanto, um dilema clássico entre dois bens: a autodeterminação de um povo e a estabilidade de uma região e mesmo de um continente. Como escolher o lado em que se quer estar? Provavelmente, a resposta certa está em não escolher – simplisticamente – um dos lados mas tentar fazer a ponte. Em vez de ser uma coisa ou outra, obter uma coisa e outra. Será possível?

O grande desafio na gestão de dilemas é conseguir ser fiel aos princípios mas estar aberto a uma negociação e a um gradualismo que nos faça evitar rupturas e choques. Estes podem destruir a bondade e a justiça de um princípio. Assim, esgotar todos os recursos negociais, usando e abusando da imaginação para a construção de soluções para vitórias comuns, é o caminho certo. Com paciência, muita paciência. Só assim se conseguirá ir mais longe.

No caso concreto do Kosovo, creio que não se esgotaram todas as possibilidades negociais para tentar uma solução concertada entre todas as partes. A aspiração frenética – compreensível – pela independência por parte dos kosovares parece ter feito ‘curto-circuitar’ um caminho negocial. Dirão alguns que jamais seria possível um acordo com os sérvios. Talvez, mas nunca o saberemos. O que temos, para já, é uma situação explosiva para gerir, com uma crescente tensão entre os apoiantes de um lado e outro. Russos e americanos, com os seus aliados europeus, vão esgrimir na arena internacional os seus argumentos pró e contra a independência do Kosovo. A paz vai ter que esperar.

O Centro da Educação

Aparentemente, o sistema escolar desenvolveu um modelo de reflexão, planeamento e intervenção onde o Estudante – suposto centro da acção educativa, num modelo de desenvolvimento humanista – parece ser, algumas vezes, uma simples peça do processo, quase desconhecida e por isso incompreendida. Tomando-o como uma massa ainda por moldar, igual e inespecífica, o sistema, ainda que sem dolo nem sequer consciência, menospreza-o.

Consequentemente, as evidentes boas intenções dos objectivos, conteúdos e dos processos educativos esbarram num abismo para o qual não se construiu atempadamente pontes. Este abismo torna-se cada vez mais fundo, com a velocidade da mudança dos nossos tempos. Cada dia que passa a outra margem está mais longe. A velocidade da mudança, que contribui para que as gerações que convivem na Escola (professores e estudantes) se tornem mais distantes, aconselha a recuperar para o centro da discussão a prioridade ao (re)conhecimento sistemático do centro e razão de ser da Educação: os estudantes.

É urgente que não nos deixemos manietar pelos interesses (muitos deles, legítimos) do que permanece no sistema – docentes, programas, procedimentos, estrutura do Ministério – e que, por isso, têm uma capacidade de pressão mais sensível. É necessário evitar ser-se submerso por uma imensidão de problemas laterais que tendem a perturbar a clarividência sobre o centro da Educação.

É evidente que este não é um problema exclusivo da Escola. Outros importantes intervenientes no processo educativo sofrem de limitações equivalentes. Apesar dos esforços evidentes de aproximação geracional são muitos os pais que não partilham de um código que lhes permita compreender e interagir com os filhos. Mas, apesar disso, a Família parece estar a gerir melhor este objectivo de compreensão e comunicação com os filhos do que a Escola com os seus estudantes.

Neste contexto parece evidente que, se assumirmos os alunos como o centro da Educação, se torna tão necessário conhecê-los e compreendê-los quanto definir os conteúdos e os processos educativos, pois não há eficácia educativa sem um justo equilíbrio da atenção a estas duas dimensões.

Note-se que este conhecimento não se limita só a uma abordagem – aliás essencial – da Psicologia da Infância ou da Adolescência, nem, muito menos, a um simples estudo mais aprofundado da Pedagogia. É fundamental estar atento a traços mais subtis e voláteis: as tendências e as modas, os ídolos e as referências, o vocabulário e os códigos não escritos, os programas de televisão e os jogos de computador, a música e as causas deveriam ser suficientemente conhecidas para que a Educação seja eficaz.

O desafio é grande. Mas se a resposta não for esta, arriscamo-nos à total ineficácia do esforço educativo do nosso sistema.

Esperanças de Portugal

Comemora-se hoje os 400 do nascimento do Padre António Vieira, um dos grandes de Portugal. Do muito que se poderia dizer nesta ocasião, ilumina-se uma das ideias mais incompreendidas – e ridicularizadas – do pregador: o V Império.

Nascido em 1608, em Lisboa, Vieira conhece a sua Pátria num contexto de profunda crise. Com o desastre de Alcácer Quibir, onde em 1578 morrera o rei D. Sebastião, Portugal ficara sem descendentes e vulnerável à anexação por Espanha, que acaba por acontecer em 1580. Entre mortes e resgates, o País fica destroçado e, longe dos tempos de euforia dos Descobrimentos, entra no seu período mais negro.

Alguns anos depois, a resistência à anexação vai começando a ganhar forma mas eram grandes os obstáculos à concretização do desígnio da Restauração. A depressão pós-Alcácer Quibir e a força dos ocupantes tornam-na quase impossível.

Quando, em 1640, acontece a Restauração da Independência, é natural que muitos lhe atribuam contornos de milagre. Mas a profunda crise que Portugal vivia à época não se poderia resolver de um dia para outro. A independência reconquistada necessitava de ser consolidada todos os dias.

António Vieira, que ruma à metrópole em 1641, liderando uma delegação da província do Brasil que vem reconhecer o novo monarca, percepciona esse novo desafio e assume essa missão, em diferentes roupagens.

Este novo combate, fê-lo o jesuíta com todo o empenho, nomeadamente no púlpito e na pena, procurando construir um capital simbólico de esperança.

Aqui estará, provavelmente, a raiz das obras – ‘Esperanças de Portugal’, ‘Quinto Império do Mundo’, ‘História do Futuro’ e ‘Chave dos Profetas’ – que, duas décadas mais tarde, vão dar corpo ao mito do V Império.

Se considerado no essencial da sua mensagem e se focado na sua principal motivação mobilizadora de uma nação em perigo, o mito do V Império de António Vieira faz falta ao Portugal contemporâneo.

Como no seu tempo, Portugal precisa de se ultrapassar e reencontrar o seu destino no Mundo. Como na sua época, o desafio do multiculturalismo, da defesa da diversidade, do diálogo entre crentes e não crentes, bem como a promoção da dignidade humana são temas em agenda.

Mas, sobretudo, em tempos de crise, onde a nação se inquieta, urge afirmar que há futuro. Que Portugal pode ser capaz, como já o foi, de mais e melhor. É fundamental actualizar as ‘Esperanças de Portugal’. E se o V Império, tal como o sonhou Vieira, está datado, o essencial da sua função – construir a esperança, criar confiança e oferecer um desígnio nacional – continua actual e necessário.

Faltam Vieiras que o digam ao nosso tempo. Com engenho e arte.

Simetria

Há alguns meses, o Estado desencadeou uma iniciativa inédita de divulgar na internet a lista de grandes devedores, como mecanismo de pressão e de condicionamento social desses refractários. Ao que parece, tal medida teve um sucesso razoável na recuperação de alguns créditos pois devedores houve que, perante tal iminência, se apressaram a pagar as suas dívidas. Recentemente, ainda que de forma limitada, o Tribunal de Contas fez o inverso: publicou a lista de credores do Estado. Era o mínimo que se exigia.

Na passada semana, num outro eixo, o Governo veio anunciar que o Estado procuraria reduzir até 2010 os seus prazos de pagamento da média actual de cinco meses para 30 a 40 dias.

Estas questões sinalizam um tema central para a recuperação do prestígio das instituições. O Estado, enquanto emanação de todos nós, deve ser sempre pessoa de bem e nunca deve abusar da sua posição dominante. Deve, por isso, na relação com o cidadão, com as empresas e com as instituições da sociedade civil, ser exemplar. Desde logo, deve cultivar uma relação simétrica e recíproca. Não pode, por exemplo, exigir ao cidadão ou à Empresa algo que não pratica. Não deve cultivar uma relação de desconfiança prévia e de um “pague primeiro e queixe-se depois”. Por isso, se quer publicar as dívidas que cidadãos ou empresas têm para com ele, deve começar por publicar as suas dívidas para com cidadãos ou empresas. Essas listas têm de estar lado a lado.

Em simultâneo, defendo convictamente que o Estado deve aceitar que se aplique às suas dívidas para com os seus credores – individuais ou colectivos – as mesmas penalizações que cultiva para com os seus devedores. Ou seja, não é aceitável que o Estado não pague juros de mora por pagamentos atrasados para lá do prazo acordado, sendo que, naturalmente, não deveria sequer ter esse atraso de pagamentos. Sei, por experiência própria, que muitos dos atrasos não estão dependentes da vontade dos funcionários ou dirigentes públicos mas de um sistema incrivelmente burocrático e pesado. Mas, perante essas dificuldades, a resposta certa é, por um lado, melhorar o sistema mas, por outro, assumir os custos desses atrasos, pagando os devidos juros de mora.

Um outro desafio passa por vir a ser aceite o pagamento de dívidas ao Estado com créditos pendentes. Isto é, se devo ao Estado 10 e o Estado me deve 100, fica a dever-me só 90. Esta é uma matemática simples que ajudaria a moralizar relações simétricas e de respeito mútuo. Ora, o que vigora actualmente como regra é que eu pague já os 10 ao Estado e o Estado pagar-me-á os 100, sem juros, quando puder.

Note-se que não cultivo uma visão anti-Estado. Pelo contrário. Faço-o por valorizar extraordinariamente a sua função. Mas um Estado sério, eficiente e eficaz. Um Estado digno, respeitado e respeitador.

26 janeiro 2008

Princípios e interesses

É clássico colocar os princípios e os interesses como antagónicos e divergentes. Inimigos desde sempre, estes dois mundos confrontam-se (aparentemente) em todos os campos da nossa vida. Onde vingam os interesses não têm lugar os princípios e vice-versa. Diz-se, por exemplo, que os países não têm princípios, só têm interesses. Atrás desta dicotomia vem sempre a acusação de que quem defende princípios, nomeadamente na política, não tem a noção da realidade e é um ‘lírico’. Então, só a gestão dos interesses seria expressão da inteligência e a via eficaz da ‘real politik’. Ora, essa é uma visão comprovadamente errada.

Essa leitura da realidade radica num evidente pessimismo sobre a natureza humana e configura uma acção política utilitária sem horizonte nem sustentabilidade. Vejamos, por exemplo, o que tem acontecido ao nível do ambiente. Esquecidos os princípios de protecção da Terra que nos foi deixada em herança, em particular dos seus recursos naturais, deixámos à solta os interesses de um crescimento a qualquer custo e sem princípios. É certo que, a curto prazo, alguns beneficiaram com essa gestão de interesses. Mas torna-se já evidente o preço que todos vamos pagar por esse desenvolvimento sem princípios. O aquecimento climático, a crise energética, a desertificação ou a complexa gestão da água são evidências do que quer dizer a política dos interesses, interpretada sem princípios.

Se olharmos para uma outra dimensão, a do comércio internacional, de novo é evidente a que resultado nos conduz uma visão hiperpragmática de defesa de interesses próprios. O empobrecimento de muitos com quem comerciamos e a quem impomos um preço elevadíssimo nessa relação levar-nos-á a um beco sem saída. A repartição injusta da riqueza é uma bomba ao retardador. O desespero de uma cintura de pobreza à volta da Europa pressionará as nossas fronteiras até ao colapso. O êxodo à procura de sobreviver movimentará os pobres que o nosso egoísmo gerou. O facto de, enquanto países ricos, não termos princípios e só vivermos em função dos interesses egoístas – respeitando a regra suposta das relações internacionais – provoca uma catástrofe. Os interesses sem princípios são verdadeiros eucaliptos na nossa sociedade. Secam tudo e matam antecipadamente o futuro.

Os nossos interesses só são defendidos, sustentadamente, se forem respeitados princípios fundamentais. Sem princípios, estaremos sempre a perder. É só uma questão de tempo para percebermos os efeitos. Quem quiser ser verdadeiramente eficaz a defender os seus interesses comece por tornar sólidos os seus princípios. E entre esses, dê prioridade ao respeito pelo bem comum, à cultura de solidariedade e à promoção da justiça social. Precisamos de alcançar esta plena convergência de princípios e de interesses para que seja viável um Mundo melhor.

A erosão da confiança

Quando reflectimos sobre a pobreza e a riqueza das nações, o que condiciona o seu desenvolvimento ou o seu afundamento, vezes de mais somos canalizados para a análise da disponibilidade de recursos naturais, de capital ou de força de trabalho qualificado. Procuram-se, assim, explicações nos motivos mais óbvios que sendo parte da verdade não a esgotam e, muitas vezes, distorcem-na.

Como Alain Peyrefitte (‘A Sociedade da Confiança’, Edições Piaget) acreditamos que o que justifica o desenvolvimento sustentável de algumas nações é, acima e antes de tudo, o serem sociedades de confiança, onde se conjugam a liberdade, a autonomia e a responsabilidade, numa mistura virtuosa que faz milagres. Essa dinâmica assentaria fundamentalmente numa sociedade caracterizada pelo vínculo da confiança entre os seus cidadãos e entre cada um deles e as instituições. A estes acresceria, em lugar cimeiro, a confiança de cada um em si próprio, o que lhe daria uma capacidade de empreender e de assumir riscos, que seria essencial para o desenvolvimento.

Perante as dificuldades que enfrentamos, não podemos deixar de ler a crise segundo este filtro. Os índices de confiança na sociedade portuguesa têm vindo a sofrer uma erosão persistente, o que nos leva a não confiar em ninguém, nem sequer em nós próprios. Somos bombardeados por uma visão sempre pessimista da realidade e influenciados por um ambiente hostil de ataques cerrados por tudo e por nada. De igual forma, ficamos condicionados por uma evidência de maus exemplos, destacados na agenda mediática, e inevitavelmente somos empurrados para esta desconfiança militante que nos mina e nos corrói.

Quando assistimos à descredibilização – justificada ou não, pouco importa para este efeito – da política, da justiça, da autoridade policial, das empresas, da saúde ou da escola, a desconfiança dispara e perde-se a mola essencial capaz de nos projectar para os mais altos voos. Ficamos deprimidos e encolhidos. Medrosos e cinzentos. Falta-nos o combustível para caminhar, porque a confiança se esvaiu.

Nós, portugueses, precisamos de cuidar da confiança. Necessitamos de nos disciplinar para recusar a destruição suicida dos elos de confiança que nos unem (ou uniam). Devemos, ao mesmo tempo, cultivar pequenos e grandes gestos que nos mostrem que há – por regra – todas as razões para confiar e que os motivos para desconfiar (que também existem) não representam senão uma mínima expressão. Da mesma maneira, devemos fazer florescer tudo o que reforça a autoconfiança em cada um de nós. Nas nossas crianças e nos nossos adultos. Não há batalhas impossíveis para quem confia em si próprio e nos outros.

Esta responsabilidade é de todos nós. Cidadãos e cidadãs, antes de tudo. Mas é particularmente exigível aos políticos e aos jornalistas, aos juízes e aos professores, aos médicos e aos agentes de segurança, entre muitos outros, que a confiança se reforce. Neste processo é também vital que o Estado e as suas instituições consigam ganhar esse capital de confiança junto dos seus cidadãos. Sem confiança, não há futuro.

15 janeiro 2008

Diálogo intercultural

O ano que iniciou é dedicado, na Europa, ao diálogo intercultural. E bem. Num mundo que se globalizou radicalmente e onde (algumas) fronteiras se diluíram, afirmam-se o pluralismo e a diversidade como realidades incontornáveis.

Os que acreditaram que a globalização representaria uma uniformização cultural ou religiosa enganaram-se redondamente. Pelo contrário, por acção ou reacção, a globalização conduziu ao efeito inverso. Nunca foi tão evidente, à escala micro e macro, que a Humanidade é um imenso puzzle de peças diferentes e que qualquer sonho de uniformidade cultural ou religiosa não tem viabilidade.

Quer ao nível cultural quer ao nível religioso colocam-se importantes desafios de uma convivência pacífica entre diferentes tradições de povos vizinhos. Acresce que, graças à crescente mobilidade humana, no seio da própria Europa se torna evidente a necessidade de gerir essa diversidade cultural. Assim sendo, o único caminho é sermos capazes de gerir a diversidade.

Porém, não se julgue que é de agora esse desafio.

Ao longo de séculos, tendo pelo meio muitas etapas violentas de desencontro e de erros monstruosos, a Europa teve que gerir ao nível religioso a relação entre católicos e protestantes, ou entre cristãos e judeus. Também ao nível cultural, a presença de fortíssimas matrizes culturais – escandinavas, anglo-saxónicas, germânicas, francesas – exigiu esse esforço de diálogo e de encontro. Trata-se, agora, de renovar essa experiência.

Num primeiro nível, o diálogo intercultural tem como foco essencial, numa sociedade plural, o reforço do sentido de pertença e a construção participada de uma comunidade de destino, partindo do respeito mútuo pela diversidade, considerada um valor em si mesmo.

Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades e indivíduos, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. É uma dinâmica interactiva e relacional. Muito mais do que a simples aceitação do ‘Outro’ propõe-se o acolhimento do ‘Outro’ e transformação de ambos com esse encontro, decorrendo daí um novo ‘Nós’.

Sempre plural, mas também sempre coeso.

Note-se, para que não restem dúvidas, que o diálogo intercultural se desenvolve sempre e só no quadro dos Direitos Humanos, da Democracia, do Estado de Direito com o primado da Lei. Do lado das obrigações, mas também dos direitos. Mas não admite que existam uns ‘mais iguais do que outros’, nem assume a Lei como algo de cristalizado e imutável.

A opção intercultural é, de todas as políticas de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua. Por isso, o Ano Europeu do Diálogo Intercultural é uma excelente oportunidade para investir neste caminho.

04 janeiro 2008

Três desejos

Os ciclos do tempo têm esta impagável vantagem de permitirem uma sensação de renascimento. De começar de novo. De aspirar a que o amanhã possa ser diferente de ontem. De se ter deixado para trás tudo o que não presta. De pôr os contadores a zero.

Ainda que, em grande parte, não passe de ilusão de óptica, há que aproveitar a boleia. Cada um de nós saberá que metas colocar para si neste recomeço.

Para uns, sem ser demasiado ambicioso, usando uma estratégia de ‘pouco, pequeno e possível’, talvez se consiga alcançar algo. Para outros, só os grandes desafios os mobilizam suficientemente e nada menos do que o (quase) impossível é interessante. Para todos, o importante mesmo é concretizar essas metas, quaisquer que sejam, com toda a energia e convicção dos recomeços.

Colectivamente também precisamos desta nova oportunidade. Que desejos temos para o próximo ano? Que ambicionamos para o nosso destino comum, nos próximos meses? Pelo meu lado, atrevo-me a enunciar três desejos, tão simples quanto próximos da utopia. O primeiro desejo é que saibamos dizer mais vezes “o que é que posso fazer pelo meu país?” em vez de “alguém tem de fazer alguma coisa por este país!” Se formos consequentes com esta atitude, seremos mais participativos, mais exigentes e mais generosos. Deixaremos para trás uma atitude sebastiânica infantil que nos desresponsabiliza e perceberemos que a possibilidade de um futuro melhor está nas nossas mãos. Assim, cumprindo a nossa parte, poderemos fazer muito por um Portugal melhor.

O segundo desejo liga-se com o primeiro. Gostava que fossemos capazes de reforçar, em primeiro lugar, o que nos une, em vez de acentuar sempre o que nos divide. Somos um pequeno povo que já foi capaz de grandes feitos e... de grandes disparates. Mas se há uma no-ta comum, que já vem desde o tempo dos lusitanos, é que tendencialmente “não nos governamos nem nos deixamos governar”. Em grande medida isso resulta da permanente fractura interna em que vamos vivendo. Precisamos, ao invés, de reforçar a coesão nacional, porque há muito que se sabe que “a união faz a força”. O último desejo, e porventura o mais importante, é que viremos as costas à lamúria e ao pessimismo e saibamos reforçar a esperança e a confiança. Precisamos de contrariar o vaticínio de Unamuno e provar que não somos um povo de suicidas. Chega de discursos catastróficos e de vozes de mau agoiro. Basta de profecias da desgraça e de becos sem saída. Quanto maiores as dificuldades, mais urgente é a esperança.

Para os próximos meses precisamos de acreditar que, se fizermos por isso, o futuro pode ser melhor. Mas não desprezemos esta dimensão do ‘acreditar’. Muito à nossa maneira, só faremos alguma coisa por um futuro melhor se acreditarmos, se nos transcendermos, se ousarmos. Se não, mesmo que sejamos tecnicamente capazes e que até tenhamos os meios, não o faremos.

Boas intenções, dirão alguns. Sê-lo-ão, com certeza. Mas se não nos inspirarmos nelas, creio não iremos a lado nenhum. Bom ano!

01 janeiro 2008

O dia seguinte

Mais um Natal se comemorou. Com a tradição mais ou menos respeitada, em torno da agitação das festas, das prendas e das comidas, à medida de cada um, lá se passou. Tornámo-nos, provavelmente, seres exaustos. Aproveitámos, talvez, para fazer algum Bem que a corrida dos dias, ao longo do ano, não deixa tempo, nem cria ambiente. Deixámos, quem sabe, um gesto de solidariedade, aqui ou além, para os que não tiveram consoada, ou não sentiram o calor da família reunida. Mas agora, passado o dia de Natal, voltaremos ao normal, à nossa “vidinha”, sem tempo para essas coisas. Ainda não percebemos que o verdadeiro sentido do Natal se percebe – ou não – no dia seguinte.

Quando terminou toda a agitação externa, quando as luzes já não encandeiam a alma e quando os doces já não iludem o verdadeiro sabor da vida, aí estamos prontos para entender o Natal. Que encontraremos então, se soubermos ver o invisível? A experiência cristã, ao alcance pleno dos crentes, mas também entreaberta aos não-crentes, deixa-nos um Deus-menino que se tornou Homem, partilhando as contingências da nossa vida. Desde o primeiro momento de um nascimento em pobreza, até um último suspiro, pendurado injustamente numa cruz, Ele foi um de nós. Esta mensagem de um Deus que desce da sua morada grandiosa e, por Amor, se disponibiliza a viver connosco todas as vulnerabilidades humanas é extraordinária. Numa cultura judaica, onde o divino era sempre magnificente e distante, esta mensagem de um vulnerável Deus-menino era inesperada e mesmo escandalosa. Ainda hoje estamos na mesma. Custa-nos muito imaginar o rosto de Deus na simplicidade e na discrição. Mas foi isso que resultou daquela noite maravilhosa, em Belém da Judeia, há dois mil anos.

Uma outra dimensão que se descobre neste mistério cristão do Natal é um Deus-menino que se transforma em nosso Irmão. Que nos eleva à categoria de participantes na divindade. Sem distância, como se tocássemos a eternidade. Mas se percebermos bem a dimensão dessa herança do dia seguinte, em que nos descobrimos irmãos não só Dele, mas de todos os homens, o Natal ganhará uma consequência extraordinária. Como seria diferente o mundo se víssemos sempre no outro homem, um irmão! Como tudo poderia ser melhor...

Finalmente, podemos descobrir no dia seguinte, a forma como nos quis mostrar também que a força de Deus começa por repousar sobre os mais pobres e mais fracos, entre os que não têm lugar na hospedaria para nascer, entre os que, para sobreviver, têm que fugir, ainda que acabados de nascer. O dia seguinte desafia-nos, por isso, aos que temos muito. Desafia-nos a desacomodarmo-nos e, como os Magos, irmos à sua procura, nos estábulos dos nossos dias. À margem das luzes, do conforto e da fama.

Alguns, teremos a sorte de O descobrir como Deus; mas todos o poderemos ver como inspiração. Esta é a magia do dia seguinte.

(26/12/2007)

Discernimento

Se olhássemos o mundo pela perspectiva do mercado diríamos, que se vive, no lado da oferta, uma Era de abundância e de diversidade, provavelmente sem paralelo na História da Humanidade. Do lado da procura, apesar das limitações e das excepções, existe um assinalável incremento na capacidade de consumo da oferta disponível – e de novas exigências – que retroage positivamente, estimulando mais oferta.

A ascensão do consumo, estimulado por esta economia de mercado ufana e triunfante, que transporta uma oferta sempre crescente de bens e serviços é assim evidente e, potencialmente, contagia todos os domínios do consumo. Do entretenimento à indústria automóvel, dos media aos hipermercados, das indústrias culturais à internet, multiplicam-se as referências e as ofertas. As mais recentes tendências de segmentação e de personalização da oferta aumentam ainda mais este registo, indo ao extremo de ter tantos sub-produtos quantos os sub-grupos de consumidores.

Também na vida das empresas, esta dinâmica tem várias expressões. Decorrente da globalização, abriram-se mercados enormes, que ultrapassam fronteiras geográficas ou hábitos culturais. Por outro lado, a já referida segmentação fina do consumo, criou uma diversidade de oportunidades – e de ameaças – para a afirmação de produtos e serviços. Ambos os movimentos ocorrem num ambiente de fortíssima concorrência que exige, desde logo, uma enorme capacidade de discernimento empresarial.

Mas esta abundância e diversidade não se vive só no mercado. Está em todo o lado e mudou a nossa vida.

Não se trata, contudo, de uma abundância monocromática, nem de uma diversidade coerente. A complexidade e a contradição somam-se como características estruturantes do tempo presente e futuro. Vive(re)mos num labirinto, rodeados de resmas de informação, num arco-íris de opções. É, e será, cada vez mais um mundo angustiante para indecisos – tantos caminhos! - e perigoso para simplistas – destruídos pelas armadilhas da complexidade.

Por isso, emerge a necessidade imperiosa de desenvolver e consolidar, a nível individual e colectivo, a capacidade de discernimento – saber, em cada momento, fazer as perguntas certas, conhecer e seleccionar a informação disponível relevante e, sobre ela, fazer um juízo. Em consequência, tomar opções, operacionalizá-las e, finalmente, avaliá-las, integrando a aprendizagem decorrente da experiência na sua capacidade futura de discernimento.

Em certa medida, o passaporte para o futuro exige como visto, a capacidade de escolher, sustentada a montante no acesso e na leitura dos dados e a jusante na capacidade de dar resposta e avaliar decisões.

Audácia da Esperança

Por estas semanas, nos Estados Unidos da América (EUA), aceleram as primárias que permitirão aos dois maiores partidos – republicano e democrata – escolherem os seus candidatos para as presidenciais do próximo ano. Se entre os republicanos nada de interessante se passa, já no campo dos democratas assiste-se a uma luta inédita. Os dois candidatos melhor posicionados são Hillary Clinton e Barack Obama. Assim, os democratas apresentarão, pela primeira vez na história do seu país, uma mulher ou negro como alternativas para o mais alto cargo político dos EUA e, porventura, um dos mais importantes protagonistas mundiais. Caso um deles venha a ser o próximo presidente dos EUA o impacto simbólico não será pequeno e seria uma excelente notícia para o mundo.

Entre os dois, salienta-se contudo o senador Obama. Com 46 anos, este americano já revolucionou com a sua candidatura o panorama político americano. Licenciado em direito em Harvard, filho de uma americana e de um queniano, trabalhador social em bairros deprimidos de Chicago, surgiu como voz de uma política de esperança que tem levantado muitos apoios. Apesar das sondagens ainda lhe darem um segundo lugar atrás de Hillary, não se pode ignorar o eco que a sua mensagem tem tido nos americanos de todas as origens. Ao ler recentemente o seu livro “A audácia da esperança” pude perceber um pouco melhor o sucesso de Obama. E entusiasmar-me com ele.

Sem ser um candidato anti-sistema, o senador percebeu “a política pode ser diferente e que os eleitores querem qualquer coisa de diferente. Percebi que estão fartos de distorções, de ofensas pessoais, de sound-bites para resolver problemas complicados..” E esta a ensaiar a resposta a este desafio.

Creio que, do muito que o livro evidencia, a força da proposta que Barack Obama interpreta, resulta sobretudo da fusão entre uma forte preocupação de justiça e coesão social, com a defesa de valores de sempre. Assume, por isso, sem rodeios que “para promover a sociedade que desejamos precisamos tanto de transformação cultural quanto de acção governamental; de uma mudança de valores e de políticas” e que “é a linguagem dos valores que as pessoas usam para ordenar o seu mundo, é o que lhe põe servir de inspiração para fazer agir e fazê-las sair do seu isolamento”.

Para o nosso contexto europeu, avesso a centrar-se nos valores profundos enquanto eixo da acção política, ou sempre pronto a catalogar qualquer defesa de valores como atitude típica da “direita”, Obama representa uma voz inesperada, tanto mais porque é de “esquerda”. Acresce que defende valores a partir de uma perspectiva positiva, marcada pela audácia da esperança, traço comum que visualizou na esmagadora maioria dos americanos com que se foi encontrando. E é essa política da esperança que o levará longe, porque, como disse Luther King, “tudo o que é construído no mundo, é construído pela Esperança”.

Do outro lado do Atlântico, sopram ventos novos que nos devem inspirar.