Com o calendário a mostrar Dezembro, começam a multiplicar-se as árvores de Natal. Dentro e fora de portas, em versões de plástico ou ainda com o tradicional pequeno pinheiro, vão enfeitando os nossos dias. Nada contra. Sinal de festa que faz falta à nossa vida, sobretudo se tiver algum sentido além de fugazes e vazios apelos consumistas.
No Porto, a este propósito, acontece por estes dias um contraste cheio de significado. Na rotunda da Boavista, transplantada da experiência nos anos anteriores em Lisboa, está uma árvore de Natal gigante. Do alto dos seus 76 metros e com o brilho de três milhões de lâmpadas, ilumina toda a rotunda. São 280 toneladas de artefactos sofisticados para comemorar comercialmente a quadra natalícia. Muitos euros a terão feito crescer, talvez para lembrar que... é tempo de comprar prendas para pôr na árvore de Natal caseira.
Mas, longe do centro, no Bairro do Cerco, tido como território difícil, está uma outra árvore. De Natal, também. Com muito mais significado, porém. Fora do bulício das compras, entre os que não tiveram lugar na hospedaria, lá está aquela árvore especial.
Um grande plátano, enraizado há décadas no meio do bairro, foi transformado numa árvore de Natal que é uma metáfora notável. No topo desta outra árvore está uma estrela de Natal. Feita pelas pessoas do bairro e soldada por um antigo metalúrgico. Foi colocada como expoente desta dinâmica. Como estrela que aponta um caminho. Mais abaixo, nos seus ramos repousam não só as luzes que um morador permitiu que fossem ligadas a uma tomada eléctrica da sua casa. Penduradas nos seus braços estão também faixas coloridas. Nelas estão inscritas frases que são os desejos de Natal das crianças para o seu bairro. E também o que cada uma destas crianças pensa que pode fazer para que esse desejo se concretize. Nem mais, nem menos.
Não poderia haver melhor retrato de Natal. Entre os mais excluídos, que ficam à margem, também é possível fazer brilhar a esperança. Com a participação de todos e para todos. Numa lógica animada pelas suas crianças, nas quais os desejos não são egoístas nem se referem a brinquedos ou gulodices. Pedem o que mais falta lhes faz e comprometem-se a não esperar que a concretização desse desejo caia do céu. Assumem fazer algo para que o desejo se torne realidade. Não que acreditem que por estes dias acabe instantaneamente o tráfico de droga, a violência e a pobreza que fazem sofrer o bairro. Mas porque sabem que, apesar de tudo, nas suas mãos está a capacidade de mudar alguma coisa.
Estão de parabéns Márcia Andrade e a equipa do projecto Pular a Cerca, do programa Escolhas, que, com o suporte do consórcio de instituições que promovem o projecto, deram um exemplo. Para todos estes protagonistas, o Natal já chegou. Como eles, muito podemos fazer para multiplicar a esperança nesta época.
09 dezembro 2007
04 dezembro 2007
Heróis anónimos
Sempre gostei das grandes biografias, das histórias de homens e mulheres notáveis, que se agigantaram em momentos críticos da História. Todos nós crescemos com os seus nomes à cabeceira dos nossos sonhos e ambicionámos ser parecidos. Mas, com a idade, vamo-nos acomodando ao possível.
O grande heroísmo com que sonhámos vai ficando progressivamente mais longe. Cada vez mais longe. Só que surge então a sabedoria de ver, à nossa volta, os heróis anónimos. Os que não têm direito a livro biográfico, nem a nome próprio nos escaparates da fama. Mas que representam um exemplo para todos nós. E que são alguns de vós.
Passo os olhos por eles. Descubro as mães que preparam os seus filhos ainda a manhã não tem luz, os deixam no infantário, partindo para o seu trabalho em transportes públicos a abarrotar. A jornada tem de ser cumprida como se nada mais fizessem e, no regresso, de novo a correria. Apanhar os miúdos, fazer compras, chegar a casa, dar jantar e deitar os miúdos e... preparar um novo dia que será igual. Perante elas me curvo, heroínas anónimas do nosso tempo.
Olho depois os pais que se desdobram numa luta pelo emprego que não está fácil, inventando aqui e além alternativas para compor um magro orçamento familiar. Admiro-os no esforço de se adaptarem aos novos tempos que também deles exigem a co-responsabilidade nas tarefas domésticas e no cuidar dos filhos. Percebo as suas angústias na relação com um mundo diferente dos seus filhos e com a incerteza de estarem à altura das responsabilidades. Perante eles me curvo, heróis anónimos do quotidiano.
Olho também para aqueles miúdos que, contra tudo e contra todos, resistem a condições adversas e não descambam. Que estudam quando o esperado era abandonar. Que alcançam sucesso, anulando o destino traçado de fracasso anunciado. Também perante estes me curvo, meus pequenos heróis desconhecidos.
Mas há mais. Muito mais. O pescador, que entre o frio da madrugada e o vento que faz baloiçar a sua casca de noz, insiste em procurar tirar do mar o seu pão de cada dia, com a salmoura a queimar as mãos e a dúvida a pairar sobre o amanhã. O condutor do comboio que não pode ter tempo para as suas divagações e se verga com a responsabilidade de milhares de vidas nas suas costas. O homem que recolhe o lixo malcheiroso e pesado que multiplicamos todos os dias, com quem nos cruzamos só em noites que regressamos tarde. A enfermeira que vela pelos seus doentes, no silêncio nocturno de um qualquer hospital, à disposição de um pedido de ajuda. O polícia que é, mais uma vez, chamado para acudir quem precisa, não sabendo que perigos esconde a escuridão... e tantos outros.
São heróis e heroínas sem notoriedade pública, mas porventura com muito mais valia humana do que alguns nomes consagrados. Anónimos que vão substituindo, na minha cabeceira, as biografias dos meus heróis de adolescente.
O grande heroísmo com que sonhámos vai ficando progressivamente mais longe. Cada vez mais longe. Só que surge então a sabedoria de ver, à nossa volta, os heróis anónimos. Os que não têm direito a livro biográfico, nem a nome próprio nos escaparates da fama. Mas que representam um exemplo para todos nós. E que são alguns de vós.
Passo os olhos por eles. Descubro as mães que preparam os seus filhos ainda a manhã não tem luz, os deixam no infantário, partindo para o seu trabalho em transportes públicos a abarrotar. A jornada tem de ser cumprida como se nada mais fizessem e, no regresso, de novo a correria. Apanhar os miúdos, fazer compras, chegar a casa, dar jantar e deitar os miúdos e... preparar um novo dia que será igual. Perante elas me curvo, heroínas anónimas do nosso tempo.
Olho depois os pais que se desdobram numa luta pelo emprego que não está fácil, inventando aqui e além alternativas para compor um magro orçamento familiar. Admiro-os no esforço de se adaptarem aos novos tempos que também deles exigem a co-responsabilidade nas tarefas domésticas e no cuidar dos filhos. Percebo as suas angústias na relação com um mundo diferente dos seus filhos e com a incerteza de estarem à altura das responsabilidades. Perante eles me curvo, heróis anónimos do quotidiano.
Olho também para aqueles miúdos que, contra tudo e contra todos, resistem a condições adversas e não descambam. Que estudam quando o esperado era abandonar. Que alcançam sucesso, anulando o destino traçado de fracasso anunciado. Também perante estes me curvo, meus pequenos heróis desconhecidos.
Mas há mais. Muito mais. O pescador, que entre o frio da madrugada e o vento que faz baloiçar a sua casca de noz, insiste em procurar tirar do mar o seu pão de cada dia, com a salmoura a queimar as mãos e a dúvida a pairar sobre o amanhã. O condutor do comboio que não pode ter tempo para as suas divagações e se verga com a responsabilidade de milhares de vidas nas suas costas. O homem que recolhe o lixo malcheiroso e pesado que multiplicamos todos os dias, com quem nos cruzamos só em noites que regressamos tarde. A enfermeira que vela pelos seus doentes, no silêncio nocturno de um qualquer hospital, à disposição de um pedido de ajuda. O polícia que é, mais uma vez, chamado para acudir quem precisa, não sabendo que perigos esconde a escuridão... e tantos outros.
São heróis e heroínas sem notoriedade pública, mas porventura com muito mais valia humana do que alguns nomes consagrados. Anónimos que vão substituindo, na minha cabeceira, as biografias dos meus heróis de adolescente.
Dignidade e Liberdade
Quase no final do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos, é útil regressar aos fundamentos, à razão de ser, ao ‘porquê’ e ‘para quê’ de uma causa que nunca se esgotará.
A afirmação da igualdade de oportunidades não resulta senão da assunção clara e inequívoca da igual dignidade de todos os seres humanos. É aqui que tudo radica: nada nos distingue na plenitude da nossa dignidade. Cada pessoa é uma obra única, uma sinfonia perfeita, uma pérola irrepetível. Para lá de qualquer aparência, de diferença formal ou de origem distinta, cada pessoa é uma humanidade individual, no dizer de Mia Couto. Essa visão humanista coloca obrigatoriamente a Pessoa no centro das políticas e reconhece-a como princípio e fim de tudo. E sendo séria esta opção, deve ter consequências. A todos nós é exigido o esforço, quer numa expressão individual, quer na esfera colectiva, de fazer respeitar a dignidade humana, de todos e de cada um dos que nos rodeiam. E esse respeito passa obrigatoriamente pela criação de iguais oportunidades para todos.
Não podemos pactuar com campos inclinados, em que para uns o jogo é sempre feito contra a gravidade enquanto para outros se desenrola com a inclinação do campo a seu favor. Não podemos aceitar que na corrida da vida, na linha de partida, uns tenham tudo para vencer e outros mal consigam dar os primeiros passos. Conviver pacificamente com esta realidade injusta como de um fado inevitável se tratasse é ignorar o respeito pela dignidade humana. É desistir de parte da Humanidade.
Precisamos, por isso, de garantir a igualdade de oportunidades, para que cada homem e cada mulher possam ser verdadeiramente livres. E, assim, um ser único e diferente. Para que o seu destino seja fruto da sua vontade, do seu trabalho e das suas escolhas e não se encontre previamente escrito pelo contexto em que nasce. A liberdade e autodeterminação de cada pessoa deverão, assim, ser os únicos factores diferenciadores no trajecto de uma vida.
Sabemos ser esta uma utopia antiga. Sempre presente e sempre inatingível. Mas como avançaria o Mundo sem a ousadia de querer evoluir em direcção à perfeição dos ideais? Renovamos, hoje e sempre, a certeza de que só vale a pena viver em busca de um mundo mais justo, com lugar para todos, no respeito pela sua liberdade e na inclusão das suas diferenças. Na certeza absoluta da inviolabilidade da dignidade humana e na convicção de que esta só é respeitada se a todos forem concedidas oportunidades iguais.
A afirmação da igualdade de oportunidades não resulta senão da assunção clara e inequívoca da igual dignidade de todos os seres humanos. É aqui que tudo radica: nada nos distingue na plenitude da nossa dignidade. Cada pessoa é uma obra única, uma sinfonia perfeita, uma pérola irrepetível. Para lá de qualquer aparência, de diferença formal ou de origem distinta, cada pessoa é uma humanidade individual, no dizer de Mia Couto. Essa visão humanista coloca obrigatoriamente a Pessoa no centro das políticas e reconhece-a como princípio e fim de tudo. E sendo séria esta opção, deve ter consequências. A todos nós é exigido o esforço, quer numa expressão individual, quer na esfera colectiva, de fazer respeitar a dignidade humana, de todos e de cada um dos que nos rodeiam. E esse respeito passa obrigatoriamente pela criação de iguais oportunidades para todos.
Não podemos pactuar com campos inclinados, em que para uns o jogo é sempre feito contra a gravidade enquanto para outros se desenrola com a inclinação do campo a seu favor. Não podemos aceitar que na corrida da vida, na linha de partida, uns tenham tudo para vencer e outros mal consigam dar os primeiros passos. Conviver pacificamente com esta realidade injusta como de um fado inevitável se tratasse é ignorar o respeito pela dignidade humana. É desistir de parte da Humanidade.
Precisamos, por isso, de garantir a igualdade de oportunidades, para que cada homem e cada mulher possam ser verdadeiramente livres. E, assim, um ser único e diferente. Para que o seu destino seja fruto da sua vontade, do seu trabalho e das suas escolhas e não se encontre previamente escrito pelo contexto em que nasce. A liberdade e autodeterminação de cada pessoa deverão, assim, ser os únicos factores diferenciadores no trajecto de uma vida.
Sabemos ser esta uma utopia antiga. Sempre presente e sempre inatingível. Mas como avançaria o Mundo sem a ousadia de querer evoluir em direcção à perfeição dos ideais? Renovamos, hoje e sempre, a certeza de que só vale a pena viver em busca de um mundo mais justo, com lugar para todos, no respeito pela sua liberdade e na inclusão das suas diferenças. Na certeza absoluta da inviolabilidade da dignidade humana e na convicção de que esta só é respeitada se a todos forem concedidas oportunidades iguais.
Pontífices
E num tempo complexo e cheio de contradições, onde o conflito facilmente degenera em agressão e violência – pelo menos, verbal –, e num quadro social marcado pelo pluralismo, pela diversidade e pela fractura, coloca-se a questão de como gerir conflitos e diferenças.
Em registo democrático e de desejável igualdade entre todos os cidadãos, a definição de um caminho comum que a todos mobilize e que a ninguém desrespeite, que parta das diferenças para chegar às convergências, constitui um dos maiores desafios.
Este objectivo torna-se tanto mais difícil quanto cada um de nós tende a absolutizar a sua posição e a ter dificuldade de ver o Mundo pelos olhos do Outro. Limitamo-nos a olhar pela nossa janela e só admitimos como verdade aquilo que daí se vê. Ora, a consequência é evidente. Ficam a faltar pontes de contacto, escasseia o entendimento e cresce a hostilidade. Ficamos encerrados na Babel do nosso desentendimento. E tal como na metáfora dessa Torre, a obra pára e fica incompleta.
O nosso tempo precisa desesperadamente de uma cultura de pontes. De quem una, em vez de separar. De quem ouça, para além de falar. De quem faça, em vez de lamentar. Há muitas margens para ligar, que sem pontes nunca se encontrarão. Por outro lado, todos os dias surgem novas ameaças à destruição de pontes que existem. Multiplicam-se as margens sem paz. É impressionante que, em tempo de guerra, um dos objectivos mais atingidos sejam as pontes. Simbolicamente, na sua destruição, está a imagem dessa maldição e das suas consequências. Assim, uma das missões mais urgentes, para quem quer lutar por um Mundo melhor, é ser pontífice.
Pode soar estranho, porque estamos habituados a ouvir esta expressão como um dos títulos do Papa – Sumo Pontífice – mas a utilização desta designação não é exclusiva, nem está associada obrigatoriamente a questões religiosas.
A expressão Pontífice provém do latim, ‘pontifex’ formado por ‘pons’ e ‘facere’ que significa ‘fazer ponte’. E se ao Papa, na tradição da Igreja Católica, está incumbida a função de fazer a ponte entre Homens e Deus, por cada um de nós pode ser assumida a missão de fazer pontes na nossa sociedade. Entre as pessoas e as suas diferenças.
Para tal notável tarefa precisamos de reconhecer a existência de margens e ter a intenção firme de as ligar. Respeitando-as na sua essência, mas afirmando que não se esgotam em si mesmo. Que só ganham sentido através das pontes que construírem.
Em cada opinião divergente, precisamos de encontrar o local certo onde se possa construir uma ponte com outra perspectiva diferente. Ser pontífice é estar ao serviço do encontro e da transformação da Humanidade. Porque inevitavelmente quem estabelece uma ponte transforma-se no encontro com o Outro. Fica melhor. Ganha cores que não tinha. Vê o Mundo por outra janela, enquanto também mostra o que se observa da sua.
Se levarmos a sério o ser pontífice, o Mundo ficará melhor.
Em registo democrático e de desejável igualdade entre todos os cidadãos, a definição de um caminho comum que a todos mobilize e que a ninguém desrespeite, que parta das diferenças para chegar às convergências, constitui um dos maiores desafios.
Este objectivo torna-se tanto mais difícil quanto cada um de nós tende a absolutizar a sua posição e a ter dificuldade de ver o Mundo pelos olhos do Outro. Limitamo-nos a olhar pela nossa janela e só admitimos como verdade aquilo que daí se vê. Ora, a consequência é evidente. Ficam a faltar pontes de contacto, escasseia o entendimento e cresce a hostilidade. Ficamos encerrados na Babel do nosso desentendimento. E tal como na metáfora dessa Torre, a obra pára e fica incompleta.
O nosso tempo precisa desesperadamente de uma cultura de pontes. De quem una, em vez de separar. De quem ouça, para além de falar. De quem faça, em vez de lamentar. Há muitas margens para ligar, que sem pontes nunca se encontrarão. Por outro lado, todos os dias surgem novas ameaças à destruição de pontes que existem. Multiplicam-se as margens sem paz. É impressionante que, em tempo de guerra, um dos objectivos mais atingidos sejam as pontes. Simbolicamente, na sua destruição, está a imagem dessa maldição e das suas consequências. Assim, uma das missões mais urgentes, para quem quer lutar por um Mundo melhor, é ser pontífice.
Pode soar estranho, porque estamos habituados a ouvir esta expressão como um dos títulos do Papa – Sumo Pontífice – mas a utilização desta designação não é exclusiva, nem está associada obrigatoriamente a questões religiosas.
A expressão Pontífice provém do latim, ‘pontifex’ formado por ‘pons’ e ‘facere’ que significa ‘fazer ponte’. E se ao Papa, na tradição da Igreja Católica, está incumbida a função de fazer a ponte entre Homens e Deus, por cada um de nós pode ser assumida a missão de fazer pontes na nossa sociedade. Entre as pessoas e as suas diferenças.
Para tal notável tarefa precisamos de reconhecer a existência de margens e ter a intenção firme de as ligar. Respeitando-as na sua essência, mas afirmando que não se esgotam em si mesmo. Que só ganham sentido através das pontes que construírem.
Em cada opinião divergente, precisamos de encontrar o local certo onde se possa construir uma ponte com outra perspectiva diferente. Ser pontífice é estar ao serviço do encontro e da transformação da Humanidade. Porque inevitavelmente quem estabelece uma ponte transforma-se no encontro com o Outro. Fica melhor. Ganha cores que não tinha. Vê o Mundo por outra janela, enquanto também mostra o que se observa da sua.
Se levarmos a sério o ser pontífice, o Mundo ficará melhor.
12 novembro 2007
Mães-coragem
O trágico acidente da semana passada, junto ao Terreiro do Paço, em Lisboa, em que morreram atropeladas duas mulheres e uma terceira ficou gravemente ferida, desocultou realidades que só longinquamente vamos percepcionando.
Filipa Lopes Semedo, de 57 anos, uma das vítimas mortais, imigrante são-tomense, mãe de 10 filhos, havia saído da sua casa, do outro lado do rio, às 4h.30m. da madrugada, para apanhar o primeiro barco que todas as manhãs atravessa o Tejo, trazendo os primeiros trabalhadores para a cidade. Com ela, viajavam outras mulheres africanas, de S. Tomé e Cabo-Verde, que vêm cuidar das limpezas dos muitos escritórios de Lisboa. Todas as vítimas atingidas por esta tragédia, tinham esse elo de união: vinham trabalhar, ainda não tinha o dia despertado, para as limpezas dos nossos escritórios.
Com efeito, nós que começamos o dia mais tarde, e que às quatro e meia da manhã ainda estamos no nosso descanso, não temos consciência da dureza de algumas vidas, em busca de pão para a família. Entre os muitos - portugueses e imigrantes - que são heróicos protagonistas destas vidas difíceis, devemos hoje particularmente uma homenagem à coragem destas mães africanas.
Agarrando com as duas mãos, qualquer emprego que lhes surja, ainda que não difira muito do circuito das limpezas ou da venda de peixe, estas mulheres, muitas delas também mães, enfrentam com uma coragem extraordinária o seu quotidiano. Rodeadas de obstáculos hostis, procuram – normalmente sozinhas - educar os seus filhos o melhor que podem, ainda que quase tudo se volte contra elas. Basta imaginar o que sentirá uma mãe ao ter que deixar, todos os dias, os seus filhos pequenos entregues a si próprios, ou a irmãos um pouco mais velhos, porque à hora que sai de sua casa não há creches abertas onde os possam deixar. E, quantas vezes, só regressam a casa depois do turno da tarde de limpezas, o que equivale a ver os filhos só à hora de jantar. São crianças que crescem sozinhas, na rua, como preço dos nossos escritórios limpos antes das 8 da manhã e depois da seis da tarde.
Mas Filipa não morreu sozinha naquela manhã. Ao seu lado, ficou Neuza, na juventude dos seus 18 anos, que atravessava a passadeira com a sua mãe, naquele momento fatídico.
A história da mãe de Neuza é a de muitas mães-coragem que emigrando, deixam os seus filhos no país de origem, à guarda da avó ou de algum familiar, sempre no sonho de um dia os poderem recuperar para junto de si. Juntam dinheiro, a partir de um magro salário, para conseguirem esse momento mágico de voltarem a juntar a família. Tinha sido essa a experiência da mãe de Neuza. Demorara quatro anos a juntar dinheiro para a passagem de avião da sua filha. Tinha conseguido trazê-la há seis meses para junto de si. Percebe-se, por isso, que após o atropelamento e apesar do seu estado muito grave, só gritasse o nome da sua filha. Nunca irá compreender porque morreu a sua filha Neuza, naquela manhã. Ainda haverá coragem que resista a mais esta provação?
Filipa Lopes Semedo, de 57 anos, uma das vítimas mortais, imigrante são-tomense, mãe de 10 filhos, havia saído da sua casa, do outro lado do rio, às 4h.30m. da madrugada, para apanhar o primeiro barco que todas as manhãs atravessa o Tejo, trazendo os primeiros trabalhadores para a cidade. Com ela, viajavam outras mulheres africanas, de S. Tomé e Cabo-Verde, que vêm cuidar das limpezas dos muitos escritórios de Lisboa. Todas as vítimas atingidas por esta tragédia, tinham esse elo de união: vinham trabalhar, ainda não tinha o dia despertado, para as limpezas dos nossos escritórios.
Com efeito, nós que começamos o dia mais tarde, e que às quatro e meia da manhã ainda estamos no nosso descanso, não temos consciência da dureza de algumas vidas, em busca de pão para a família. Entre os muitos - portugueses e imigrantes - que são heróicos protagonistas destas vidas difíceis, devemos hoje particularmente uma homenagem à coragem destas mães africanas.
Agarrando com as duas mãos, qualquer emprego que lhes surja, ainda que não difira muito do circuito das limpezas ou da venda de peixe, estas mulheres, muitas delas também mães, enfrentam com uma coragem extraordinária o seu quotidiano. Rodeadas de obstáculos hostis, procuram – normalmente sozinhas - educar os seus filhos o melhor que podem, ainda que quase tudo se volte contra elas. Basta imaginar o que sentirá uma mãe ao ter que deixar, todos os dias, os seus filhos pequenos entregues a si próprios, ou a irmãos um pouco mais velhos, porque à hora que sai de sua casa não há creches abertas onde os possam deixar. E, quantas vezes, só regressam a casa depois do turno da tarde de limpezas, o que equivale a ver os filhos só à hora de jantar. São crianças que crescem sozinhas, na rua, como preço dos nossos escritórios limpos antes das 8 da manhã e depois da seis da tarde.
Mas Filipa não morreu sozinha naquela manhã. Ao seu lado, ficou Neuza, na juventude dos seus 18 anos, que atravessava a passadeira com a sua mãe, naquele momento fatídico.
A história da mãe de Neuza é a de muitas mães-coragem que emigrando, deixam os seus filhos no país de origem, à guarda da avó ou de algum familiar, sempre no sonho de um dia os poderem recuperar para junto de si. Juntam dinheiro, a partir de um magro salário, para conseguirem esse momento mágico de voltarem a juntar a família. Tinha sido essa a experiência da mãe de Neuza. Demorara quatro anos a juntar dinheiro para a passagem de avião da sua filha. Tinha conseguido trazê-la há seis meses para junto de si. Percebe-se, por isso, que após o atropelamento e apesar do seu estado muito grave, só gritasse o nome da sua filha. Nunca irá compreender porque morreu a sua filha Neuza, naquela manhã. Ainda haverá coragem que resista a mais esta provação?
01 novembro 2007
Reciprocidade
Há um quase automatismo nas relações humanas. A máxima “olho por olho, dente por dente”, mais do que uma receita para resposta a qualquer provocação, ou medida da pena para qualquer crime, é a descrição do impulso inato na natureza humana. Tendemos a responder da mesma moeda, a não nos deixarmos ficar. Como dizem os nossos amigos brasileiros, não somos de “levar desaforo para casa”. Agimos como se fossemos um espelho. Com uma pequena diferença. Se possível, respondemos com um pouco mais de intensidade em relação à ofensa que nos foi feita. É superior às nossas forças. E quando essa reciprocidade entra em ciclo vicioso, numa espiral de vingança que se perpetua no tempo, atravessando mesmo gerações, torna-se devastadora. Esta é a plataforma de onde humanamente partimos, se deixarmos correr os instintos.
Este traço da nossa maneira de ser, desperta duas reflexões. A primeira, decorre do efeito de se contrariar conscientemente o princípio da reciprocidade, quando este alimenta a espiral da vingança e da violência. Só se interrompe verdadeiramente esse ciclo quando alguém é suficientemente forte e corajoso para não agir com reciprocidade, ou dito de outra maneira, quando é capaz de perdoar. Por isso, quebrar a reciprocidade da agressão é a uma única forma de construir a paz.
Mas há uma outra consequência do princípio da reciprocidade nas relações humanas. Se tivermos a ousadia e o bem-senso de explorar este efeito para o bem, seremos agradavelmente surpreendidos. Da mesma maneira que maldade produz maldade, a bondade gera bondade. Basta começar a experimentar. O trânsito é um excelente laboratório. Por uma vez, não faça da estrada um terreno de combate, onde não pode deixar-se “comer por parvo”. Descontraia-se. Experimente, em vez de praguejar, esboçar um sorriso, e veja o que acontece. Em vez de se esforçar por não deixar um centímetro em relação ao carro da frente, para que ninguém entre na fila, experimente abrir espaço para quem está a tentar entrar. Num cruzamento, deixe passar, em vez de forçar a passagem e quando se verificar a fusão de duas filas numa só, aceite o principio da entrada intercalada de um carro de cada fila. É tão mais simples. E, finalmente, quando alguém tiver um gesto simpático consigo, agradeça...e veja o efeito. Em 95% dos casos sentirá os efeitos positivos da reciprocidade do bem.
Quando somos capazes de iniciar, ou reforçar, algo de bom, o efeito da reciprocidade amplia o gesto e contagia outros, que provavelmente irão continuar a cadeia para além do encontro consigo. E mesmo aqueles que o achem “anjinho” por estes gestos, ficarão a pensar neles. Um dia, também eles descobrirão que este é o caminho certo.
Sendo verdade que uma borboleta batendo as asas em Tóquio desperta uma tempestade no Ocidente, talvez não seja menos verdade que de pequenos gestos bons, graças ao efeito da reciprocidade, se poderá melhor um pouco o mundo em que vivemos. Podemos começar pelo trânsito.
Este traço da nossa maneira de ser, desperta duas reflexões. A primeira, decorre do efeito de se contrariar conscientemente o princípio da reciprocidade, quando este alimenta a espiral da vingança e da violência. Só se interrompe verdadeiramente esse ciclo quando alguém é suficientemente forte e corajoso para não agir com reciprocidade, ou dito de outra maneira, quando é capaz de perdoar. Por isso, quebrar a reciprocidade da agressão é a uma única forma de construir a paz.
Mas há uma outra consequência do princípio da reciprocidade nas relações humanas. Se tivermos a ousadia e o bem-senso de explorar este efeito para o bem, seremos agradavelmente surpreendidos. Da mesma maneira que maldade produz maldade, a bondade gera bondade. Basta começar a experimentar. O trânsito é um excelente laboratório. Por uma vez, não faça da estrada um terreno de combate, onde não pode deixar-se “comer por parvo”. Descontraia-se. Experimente, em vez de praguejar, esboçar um sorriso, e veja o que acontece. Em vez de se esforçar por não deixar um centímetro em relação ao carro da frente, para que ninguém entre na fila, experimente abrir espaço para quem está a tentar entrar. Num cruzamento, deixe passar, em vez de forçar a passagem e quando se verificar a fusão de duas filas numa só, aceite o principio da entrada intercalada de um carro de cada fila. É tão mais simples. E, finalmente, quando alguém tiver um gesto simpático consigo, agradeça...e veja o efeito. Em 95% dos casos sentirá os efeitos positivos da reciprocidade do bem.
Quando somos capazes de iniciar, ou reforçar, algo de bom, o efeito da reciprocidade amplia o gesto e contagia outros, que provavelmente irão continuar a cadeia para além do encontro consigo. E mesmo aqueles que o achem “anjinho” por estes gestos, ficarão a pensar neles. Um dia, também eles descobrirão que este é o caminho certo.
Sendo verdade que uma borboleta batendo as asas em Tóquio desperta uma tempestade no Ocidente, talvez não seja menos verdade que de pequenos gestos bons, graças ao efeito da reciprocidade, se poderá melhor um pouco o mundo em que vivemos. Podemos começar pelo trânsito.
Puritanismo
Não há nada mais irritante que o puritanismo. Quase sempre se evidencia como expressão hipócrita de quem exige aos outros aquilo que não faz, ou, na versão evangélica, que vê poeiras nos olhos dos outros, ignorando traves nos seus. Cuidando das aparências, vivendo mais de palavras do que de (bons) exemplos, os seus cultores cumprem um certo papel policial na nossa sociedade. Encontramo-los nos mais inesperados locais, sobre novos temas e, atrevo-me a dizer que, se procurarmos bem, encontraremos - infelizmente - alguns traços deste puritanismo em cada um de nós.
Uma destas evidências do puritanismo os nossos tempos é exercido relativamente aos políticos. Alvos da nossa desconfiança militante, deles exigimos comportamentos tão irrepreensíveis e tão exemplares que nem os santos caberiam nessa nossa grelha de exigência. Várias figuras notáveis da sociedade portuguesa, que poderiam dar um excelente contributo ao bem comum, através da política, quando a isso são instadas pensam duas vezes. E por causa deste puritanismo, dizem que não. Se assim continuarmos os que serão elegíveis para funções públicas contar-se-ão pelos dedos de uma mão. E talvez nem sejam precisos os dedos todos...
É bom lembrar que como herança negra da cultura do jornal O Independente, ficou em alguns media portugueses – e em todos nós, como seus consumidores – uma permanente tentação puritana de escrutínio. Ministros caíram, por exemplo, por haver dúvidas se haviam cumprido rigorosamente todas as suas obrigações fiscais. Gostamos de ter uma ASAE dos políticos, em que os principais fiscais são alguns jornalistas. Mas é isso honesto? Todos nós cumprimos rigorosamente as nossas obrigações fiscais? Pedimos sempre factura quando fazemos uma obra em casa, pagando o devido IVA? Declaramos tudo o que temos a declarar?
Esta tendência puritana, que não é exclusivo nacional, tem vindo a alargar-se nos âmbitos que alcança. Já não é só os impostos, mas também a carreira académica, as relações pessoais ou os interesses de cada um. Por exemplo, aceitaríamos divulgar publicamente cada ano, os nossos rendimentos, o saldo da nossa conta bancária, os imóveis, acções ou viaturas que possuímos? Não? Ora, exigimos isso, por lei, aos nossos políticos. Note-se que esta declaração fica disponível não só para o Tribunal Constitucional, como qualquer cidadão pode consultar, divulgar e opinar sobre essa declaração de rendimentos. Já vimos artigos de jornais elaborando, a partir dos dados dessas declarações, sobre a inteligência dos investimentos em bolsa de cada ministro. É isto razoável?
Note-se, como é óbvio, que não se advoga a fuga aos impostos ou o não cumprimento das leis. Ninguém está acima da lei. Todos somos chamados a respeitar as nossas obrigações. Sejamos cidadãos comuns, políticos, empresários ou jornalistas...Deixemo-nos pois destes puritanismos e sejamos exigentes, desde logo, connosco próprios.
Uma destas evidências do puritanismo os nossos tempos é exercido relativamente aos políticos. Alvos da nossa desconfiança militante, deles exigimos comportamentos tão irrepreensíveis e tão exemplares que nem os santos caberiam nessa nossa grelha de exigência. Várias figuras notáveis da sociedade portuguesa, que poderiam dar um excelente contributo ao bem comum, através da política, quando a isso são instadas pensam duas vezes. E por causa deste puritanismo, dizem que não. Se assim continuarmos os que serão elegíveis para funções públicas contar-se-ão pelos dedos de uma mão. E talvez nem sejam precisos os dedos todos...
É bom lembrar que como herança negra da cultura do jornal O Independente, ficou em alguns media portugueses – e em todos nós, como seus consumidores – uma permanente tentação puritana de escrutínio. Ministros caíram, por exemplo, por haver dúvidas se haviam cumprido rigorosamente todas as suas obrigações fiscais. Gostamos de ter uma ASAE dos políticos, em que os principais fiscais são alguns jornalistas. Mas é isso honesto? Todos nós cumprimos rigorosamente as nossas obrigações fiscais? Pedimos sempre factura quando fazemos uma obra em casa, pagando o devido IVA? Declaramos tudo o que temos a declarar?
Esta tendência puritana, que não é exclusivo nacional, tem vindo a alargar-se nos âmbitos que alcança. Já não é só os impostos, mas também a carreira académica, as relações pessoais ou os interesses de cada um. Por exemplo, aceitaríamos divulgar publicamente cada ano, os nossos rendimentos, o saldo da nossa conta bancária, os imóveis, acções ou viaturas que possuímos? Não? Ora, exigimos isso, por lei, aos nossos políticos. Note-se que esta declaração fica disponível não só para o Tribunal Constitucional, como qualquer cidadão pode consultar, divulgar e opinar sobre essa declaração de rendimentos. Já vimos artigos de jornais elaborando, a partir dos dados dessas declarações, sobre a inteligência dos investimentos em bolsa de cada ministro. É isto razoável?
Note-se, como é óbvio, que não se advoga a fuga aos impostos ou o não cumprimento das leis. Ninguém está acima da lei. Todos somos chamados a respeitar as nossas obrigações. Sejamos cidadãos comuns, políticos, empresários ou jornalistas...Deixemo-nos pois destes puritanismos e sejamos exigentes, desde logo, connosco próprios.
"Somos todos judeus"
Domingo, fim de tarde. Depois de uma cerimónia simples, mas cheia de significado, o presidente da comunidade islâmica, Abdool Vakil, cumprimentava solidariamente o líder da comunidade judaica de Lisboa, José Oulman Carp. Antes, tinha sido o representante do Patriarcado de Lisboa, P. Peter Stilwell, a repudiar firmemente as manifestações de ódio anti-semita. Eram gestos fraternos, que se multiplicavam no cemitério judaico de Lisboa, onde, uma semana antes, várias campas tinham sido vandalizadas com suásticas nazis.
“Somos todos Judeus”, disse-se. As palavras e as orações judaicas congregaram à sua volta, não só representantes do Estado, mas também das principais comunidades religiosas portuguesas. Ninguém ficou indiferente, perante gestos ignóbeis inspirados por ideologias sinistras.
Nunca é de mais reafirmar o repúdio e a condenação por todos os gestos que violam o respeito pela dignidade humana. A longa história secular do anti-semitismo, que fez milhões de vítimas no último milénio, está cheia de gestos hostis como estes. Mesmo que isolados, ainda que sem vítimas, não é possível deixá-los passar em claro. Sem não perder a noção das proporções relativas – actualmente, em Portugal, o anti-semitismo não tem expressão quantitativa significativa - torna-se essencial condenar em absoluto um só gesto anti-semita que se verifique. Tal como um qualquer gesto racista.
Mas não chega ficar por aí. É fundamental, nestas ocasiões, demonstrar solidariedade para com as vítimas. Vem à memória o notável gesto do rei da Dinamarca, aquando da ocupação nazi e da tentativa de identificação de judeus para deportação, que passou a usar a estrela de David, como se fosse judeu. Foi seguido por centenas de milhares dos seus súbditos e os nazis falharam redondamente o seu objectivo. Por isso, a cerimónia do passado Domingo foi tão importante. Ao ter visto nessa ocasião, cristãos, muçulmanos, hindus ou ateus, juntos, ao lado dos judeus, tornou-se presente essa solidariedade.
Depois de tudo isto, falta ainda um compromisso para o futuro. Cada um de nós, como cidadão, tem a responsabilidade de, dia-a-dia, dar um contributo para a construção de uma sociedade tolerante, onde ninguém possa ser perseguido pela sua religião ou etnia. Depende de nós, sobretudo através da educação das novas gerações, que se cultive o respeito pela diversidade religiosa e cultural para que não se repitam os erros do passado. Para isso, importa revisitar a História e conhecer as tragédias que o racismo e o anti-semitismo, ou por outro lado, o nazismo, o comunismo ou o maoísmo, provocaram. De igual forma, com idêntica relevância, é fundamental a aprendizagem sobre outras culturas e outras religiões, ganhando-se afecto pela riqueza que nos proporcionam. Assim se anulará o ambiente, marcado pela ignorância, pelos estereótipos e pelos preconceitos, em que todos os radicalismos progridem.
“Somos todos Judeus”, disse-se. As palavras e as orações judaicas congregaram à sua volta, não só representantes do Estado, mas também das principais comunidades religiosas portuguesas. Ninguém ficou indiferente, perante gestos ignóbeis inspirados por ideologias sinistras.
Nunca é de mais reafirmar o repúdio e a condenação por todos os gestos que violam o respeito pela dignidade humana. A longa história secular do anti-semitismo, que fez milhões de vítimas no último milénio, está cheia de gestos hostis como estes. Mesmo que isolados, ainda que sem vítimas, não é possível deixá-los passar em claro. Sem não perder a noção das proporções relativas – actualmente, em Portugal, o anti-semitismo não tem expressão quantitativa significativa - torna-se essencial condenar em absoluto um só gesto anti-semita que se verifique. Tal como um qualquer gesto racista.
Mas não chega ficar por aí. É fundamental, nestas ocasiões, demonstrar solidariedade para com as vítimas. Vem à memória o notável gesto do rei da Dinamarca, aquando da ocupação nazi e da tentativa de identificação de judeus para deportação, que passou a usar a estrela de David, como se fosse judeu. Foi seguido por centenas de milhares dos seus súbditos e os nazis falharam redondamente o seu objectivo. Por isso, a cerimónia do passado Domingo foi tão importante. Ao ter visto nessa ocasião, cristãos, muçulmanos, hindus ou ateus, juntos, ao lado dos judeus, tornou-se presente essa solidariedade.
Depois de tudo isto, falta ainda um compromisso para o futuro. Cada um de nós, como cidadão, tem a responsabilidade de, dia-a-dia, dar um contributo para a construção de uma sociedade tolerante, onde ninguém possa ser perseguido pela sua religião ou etnia. Depende de nós, sobretudo através da educação das novas gerações, que se cultive o respeito pela diversidade religiosa e cultural para que não se repitam os erros do passado. Para isso, importa revisitar a História e conhecer as tragédias que o racismo e o anti-semitismo, ou por outro lado, o nazismo, o comunismo ou o maoísmo, provocaram. De igual forma, com idêntica relevância, é fundamental a aprendizagem sobre outras culturas e outras religiões, ganhando-se afecto pela riqueza que nos proporcionam. Assim se anulará o ambiente, marcado pela ignorância, pelos estereótipos e pelos preconceitos, em que todos os radicalismos progridem.
Sempre mais alto!
Numa odisseia sem fim, João Garcia tem vindo a conquistar os picos mais altos do mundo. Agora, num ciclo entre montanhas acima dos 8.000 metros de altitude, o nosso alpinista-mor continua o seu caminho. Tem já oito “troféus” e quer chegar ao restrito grupo de 14 pessoas que conseguiram vencer os 14 cumes montanhosos mais imponentes. Neste roteiro, em Julho passado, chegou ao pico da segunda montanha mais alta do mundo, a K2, com 8.611 metros de altitude, na fronteira entre a China e o Paquistão. A última etapa durou 15 horas, sem o auxilio de oxigénio artificial e enfrentando uma morfologia do terreno muito hostil. Mas venceu-a.
A entrar nos quarenta anos, este português notável diverte-se a procurar ultrapassar-se todos os dias. Quem já o viu e ouviu, por exemplo em entrevistas na televisão, ficou, por certo, impressionado com a sua calma e serenidade. É como se não fosse nada. Mas chegar onde nunca tinha ido, transformar obstáculos em vitórias, tornar possível o impossível são alguns dos seus desígnios. Ele é a expressão vivida de um “sempre mais alto”.
É bom, no entanto, recordar que nesta carreira notável de João Garcia nem tudo tem sido rosas. Numa das escaladas, quando conquistou o Everest (8.848 m), viu a sua vida em perigo, perdeu as pontas dos dedos e do nariz e o seu companheiro de escalada, Pascal Debrouwer, morreu na descida.
Muitos de nós interrogar-nos-emos sobre o sentido de vencer montanhas. Que acrescenta isso ao mundo? Os mais materialistas, de pés bem assentes na terra, perguntarão porquê gastar tempo e dinheiro com isto. Os mais medrosos, desdenharão da sua coragem, como é típico. Todos, pensaremos se é justo arriscar a vida nestas escaladas.
Independentemente das respostas que cada um, na sua circunstância, encontre, é óbvio que João Garcia devia ser uma referência nacional. Como ele, todos nós, temos as nossas montanhas para vencer e riscos próprios para correr. Á nossa escala, no nosso quotidiano, muitos são os obstáculos com que nos deparamos. Alguns, por mais impossível que pareça, são tão agrestes como os picos do Everest. Perante eles, precisamos de encontrar coragem para não lhes virar as costas e determinação para os vencer. Competir connosco próprios para alcançar os mais altos cumes deveria ser a nossa ambição. Por isso, como Garcia, precisamos ambicionar ir sempre mais alto, numa espiral de aperfeiçoamento, em busca dos objectivos que traçámos para a nossa vida. E perante as inevitáveis derrotas e humilhações, precisamos estar decididos a recomeçar. De novo, com a mesma fé da primeira vez e com a sabedoria do que já aprendemos no amargo das derrotas. Dessa forma, transformaremos as cicatrizes em alavanca para a vitória certa que nos espera. E, um dia, quando a etapa final chegar, que nos encontre a lutar para chegar sempre mais alto.
A entrar nos quarenta anos, este português notável diverte-se a procurar ultrapassar-se todos os dias. Quem já o viu e ouviu, por exemplo em entrevistas na televisão, ficou, por certo, impressionado com a sua calma e serenidade. É como se não fosse nada. Mas chegar onde nunca tinha ido, transformar obstáculos em vitórias, tornar possível o impossível são alguns dos seus desígnios. Ele é a expressão vivida de um “sempre mais alto”.
É bom, no entanto, recordar que nesta carreira notável de João Garcia nem tudo tem sido rosas. Numa das escaladas, quando conquistou o Everest (8.848 m), viu a sua vida em perigo, perdeu as pontas dos dedos e do nariz e o seu companheiro de escalada, Pascal Debrouwer, morreu na descida.
Muitos de nós interrogar-nos-emos sobre o sentido de vencer montanhas. Que acrescenta isso ao mundo? Os mais materialistas, de pés bem assentes na terra, perguntarão porquê gastar tempo e dinheiro com isto. Os mais medrosos, desdenharão da sua coragem, como é típico. Todos, pensaremos se é justo arriscar a vida nestas escaladas.
Independentemente das respostas que cada um, na sua circunstância, encontre, é óbvio que João Garcia devia ser uma referência nacional. Como ele, todos nós, temos as nossas montanhas para vencer e riscos próprios para correr. Á nossa escala, no nosso quotidiano, muitos são os obstáculos com que nos deparamos. Alguns, por mais impossível que pareça, são tão agrestes como os picos do Everest. Perante eles, precisamos de encontrar coragem para não lhes virar as costas e determinação para os vencer. Competir connosco próprios para alcançar os mais altos cumes deveria ser a nossa ambição. Por isso, como Garcia, precisamos ambicionar ir sempre mais alto, numa espiral de aperfeiçoamento, em busca dos objectivos que traçámos para a nossa vida. E perante as inevitáveis derrotas e humilhações, precisamos estar decididos a recomeçar. De novo, com a mesma fé da primeira vez e com a sabedoria do que já aprendemos no amargo das derrotas. Dessa forma, transformaremos as cicatrizes em alavanca para a vitória certa que nos espera. E, um dia, quando a etapa final chegar, que nos encontre a lutar para chegar sempre mais alto.
02 outubro 2007
Sucesso no Atlântico
Sempre tive um fascínio muito especial por Cabo-Verde e pelo seu povo. Gente de uma terra pobre, sem recursos naturais e com escassez de água, tem sabido encontrar, através da sua fibra e carácter, a força para se desenvolver. Apostando forte no seu capital humano, mostra, dentro e fora de portas, que não há impossíveis para quem tem determinação e sabe para onde quer ir.
Neste sentido, Cabo-Verde viu, há algum tempo, ser reconhecida a evolução positiva da sua situação socio-económica, de tal modo que iniciou um período de transição, deixando o grupo dos países menos avançados para integrar o dos países de desenvolvimento médio. Por outro lado, em Abril passado, no relatório do Banco Mundial, eram elogiados os seus resultados na educação, com melhorias no sucesso escolar, sendo um dos três melhores países africanos nesse domínio.
Na semana passada, surgiram mais duas evidências impressionantes. Dois rankings internacionais colocam Cabo Verde em lugares invejáveis no contexto africano. Por um lado, entre 48 países africanos, surge como o 4º melhor exemplo de boa governação, tendo subido dois lugares e ultrapassado mesmo a África do Sul. Neste índice da Fundação Ibrahim, só é superado pelas Maurícias e Seychelles. Por outro lado, ao nível da corrupção, medida pelo relatório da Transparência Internacional, entre 180 países, fica em 49º lugar, sendo entre os países africanos o terceiro com menor corrupção, depois do Botswana e da África do Sul.
Estas avaliações internacionais são da maior importância e têm relevante significado. Sendo naturalmente correlacionadas, a boa governação e a baixa corrupção, constituem condições necessárias para o combate à pobreza e para o desenvolvimento. Sem elas, torna-se manifestamente impossível melhorar a vida das populações. Toda a riqueza que existe – em recursos naturais ou gerada a partir do trabalho – esvai-se sem efeito útil. Enriquecem alguns, mas o povo desespera. Ora, Cabo-Verde tem mostrado que é possível fazer diferente. E isso é uma boa notícia para todo o continente africano.
Mas esta evolução notável não está isenta de ameaças. Os riscos da contaminação pelo tráfico de droga e de armas e do crescimento descontrolado em torno de uma indústria do turismo em explosão, constituem aspectos a ter em atenção pelas autoridades cabo-verdianas para que não se perca o que tanto custou a alcançar.
Neste contexto, o apoio que Portugal pode e deve continuar a dar a Cabo-Verde, reforçando o que tem vindo a ser feito, faz todo o sentido. Para além do apoio bilateral, o nosso empenhamento para que as negociações de Cabo-Verde com a União Europeia para a consagração de um estatuto de parceiro privilegiado, deve constituir uma prioridade.
Cabo-Verde é uma razão de esperança na viabilidade do progresso da humanidade e na autodeterminação dos povos. Com inteligência e com esforço, pelo seu pé e sabendo aproveitar bem as ajudas recebidas, tem feito um caminho que a todos ensina. Em África e fora dela.
Neste sentido, Cabo-Verde viu, há algum tempo, ser reconhecida a evolução positiva da sua situação socio-económica, de tal modo que iniciou um período de transição, deixando o grupo dos países menos avançados para integrar o dos países de desenvolvimento médio. Por outro lado, em Abril passado, no relatório do Banco Mundial, eram elogiados os seus resultados na educação, com melhorias no sucesso escolar, sendo um dos três melhores países africanos nesse domínio.
Na semana passada, surgiram mais duas evidências impressionantes. Dois rankings internacionais colocam Cabo Verde em lugares invejáveis no contexto africano. Por um lado, entre 48 países africanos, surge como o 4º melhor exemplo de boa governação, tendo subido dois lugares e ultrapassado mesmo a África do Sul. Neste índice da Fundação Ibrahim, só é superado pelas Maurícias e Seychelles. Por outro lado, ao nível da corrupção, medida pelo relatório da Transparência Internacional, entre 180 países, fica em 49º lugar, sendo entre os países africanos o terceiro com menor corrupção, depois do Botswana e da África do Sul.
Estas avaliações internacionais são da maior importância e têm relevante significado. Sendo naturalmente correlacionadas, a boa governação e a baixa corrupção, constituem condições necessárias para o combate à pobreza e para o desenvolvimento. Sem elas, torna-se manifestamente impossível melhorar a vida das populações. Toda a riqueza que existe – em recursos naturais ou gerada a partir do trabalho – esvai-se sem efeito útil. Enriquecem alguns, mas o povo desespera. Ora, Cabo-Verde tem mostrado que é possível fazer diferente. E isso é uma boa notícia para todo o continente africano.
Mas esta evolução notável não está isenta de ameaças. Os riscos da contaminação pelo tráfico de droga e de armas e do crescimento descontrolado em torno de uma indústria do turismo em explosão, constituem aspectos a ter em atenção pelas autoridades cabo-verdianas para que não se perca o que tanto custou a alcançar.
Neste contexto, o apoio que Portugal pode e deve continuar a dar a Cabo-Verde, reforçando o que tem vindo a ser feito, faz todo o sentido. Para além do apoio bilateral, o nosso empenhamento para que as negociações de Cabo-Verde com a União Europeia para a consagração de um estatuto de parceiro privilegiado, deve constituir uma prioridade.
Cabo-Verde é uma razão de esperança na viabilidade do progresso da humanidade e na autodeterminação dos povos. Com inteligência e com esforço, pelo seu pé e sabendo aproveitar bem as ajudas recebidas, tem feito um caminho que a todos ensina. Em África e fora dela.
O mercado e a Educação
Hoje é dia de heresia.
Apesar de ser bem conhecida a aversão do sistema educativo ao mercado e ao consumo, talvez houvesse algo a aprender com esse outro mundo. A atenção colocada no estudo do consumidor, dos seus gostos e dos seus comportamentos, precede quase sempre a acção de lançamento de um produto ou serviço para o mercado. Esta atenção centrada no cliente-consumidor foi simultaneamente causa e consequência de uma importante revolução na correlação de forças entre as partes. A diversidade de oferta, a concorrência, a necessidade de fidelizar clientes, o risco de ser penalizado quando se cometem erros, a urgência de permanentemente ouvir as sugestões, as críticas e as propostas dos consumidores fez com que os produtores de bens ou serviços deixassem de ser reis e senhores e se centrassem definitivamente nos clientes como caminho para o seu sucesso.
Esta comparação, que pode soar a heresia no contexto do sistema educativo, serve, neste caso, para sublinhar um dos mecanismos de funcionamento do mercado – o perceber muito bem o alvo da comunicação. O investimento realizado em estudos de mercado, observatórios e, mais recentemente, nos serviços de atendimento ao cliente, mostram quão importante é conhecer e compreender o cliente. E os resultados estão à vista.
Claro que a Educação não é igual à venda de sabonetes ou cereais. Todos sabemos disso. Nem se pode falar dos estudantes como de clientes, strictum sensu. No entanto, o que pode ser idêntico é a noção de que para comunicar com eficácia (e educar exige comunicar com a eficácia máxima) é indispensável compreender muito bem o nosso interlocutor. Isso obriga-nos a ir muito mais longe que o modelo educativo actual. Hoje, a Escola pede ao estudante que aprenda obedientemente o que se ensina, independentemente de se ensinar bem ou mal, ou mais grave ainda, se ensina o importante ou se se limita a acessórios. E como não cuida suficientemente de se avaliar a si própria, estranha o insucesso e simplifica a culpa, situando-a exclusivamente no aprendiz.
Essa opção radical de centragem no estudante não obriga, no entanto, a um atitude “seguidista” que torne o processo educativo refém de sondagens ou estudos de mercado. Há que saber situar esta atitude como ambiente indispensável para o sucesso do mecanismo interactivo do ensino/aprendizagem de saberes e competências essenciais.
Um pouco à semelhança de quando se encontra alguém de uma língua/cultura diferente, é importante fazer uma aprendizagem da língua (ou no mínimo, ter uma terceira língua comum) e dos costumes para poder comunicar plenamente. Isso pode ser essencial, para expressarmos adequadamente os nossos pensamentos/sentimentos de forma que, no outro contexto cultural, seja perceptível o que dizemos. Assim torna-se igualmente necessário, no processo educativo, que os seus principais actores (pais, professores e outros educadores) saibam aprender a “língua” e os costumes dos “estrangeiros” (não de outra terra, mas de outro tempo) que vivem nas nossas escolas.
Se o sistema educativo não tornar hábito estruturante o estudo e a compreensão dos seus estudantes, em cada segmento do tempo e do espaço, corre o risco de elevada taxa de ineficácia e concluir como frustrante a sua acção.
Apesar de ser bem conhecida a aversão do sistema educativo ao mercado e ao consumo, talvez houvesse algo a aprender com esse outro mundo. A atenção colocada no estudo do consumidor, dos seus gostos e dos seus comportamentos, precede quase sempre a acção de lançamento de um produto ou serviço para o mercado. Esta atenção centrada no cliente-consumidor foi simultaneamente causa e consequência de uma importante revolução na correlação de forças entre as partes. A diversidade de oferta, a concorrência, a necessidade de fidelizar clientes, o risco de ser penalizado quando se cometem erros, a urgência de permanentemente ouvir as sugestões, as críticas e as propostas dos consumidores fez com que os produtores de bens ou serviços deixassem de ser reis e senhores e se centrassem definitivamente nos clientes como caminho para o seu sucesso.
Esta comparação, que pode soar a heresia no contexto do sistema educativo, serve, neste caso, para sublinhar um dos mecanismos de funcionamento do mercado – o perceber muito bem o alvo da comunicação. O investimento realizado em estudos de mercado, observatórios e, mais recentemente, nos serviços de atendimento ao cliente, mostram quão importante é conhecer e compreender o cliente. E os resultados estão à vista.
Claro que a Educação não é igual à venda de sabonetes ou cereais. Todos sabemos disso. Nem se pode falar dos estudantes como de clientes, strictum sensu. No entanto, o que pode ser idêntico é a noção de que para comunicar com eficácia (e educar exige comunicar com a eficácia máxima) é indispensável compreender muito bem o nosso interlocutor. Isso obriga-nos a ir muito mais longe que o modelo educativo actual. Hoje, a Escola pede ao estudante que aprenda obedientemente o que se ensina, independentemente de se ensinar bem ou mal, ou mais grave ainda, se ensina o importante ou se se limita a acessórios. E como não cuida suficientemente de se avaliar a si própria, estranha o insucesso e simplifica a culpa, situando-a exclusivamente no aprendiz.
Essa opção radical de centragem no estudante não obriga, no entanto, a um atitude “seguidista” que torne o processo educativo refém de sondagens ou estudos de mercado. Há que saber situar esta atitude como ambiente indispensável para o sucesso do mecanismo interactivo do ensino/aprendizagem de saberes e competências essenciais.
Um pouco à semelhança de quando se encontra alguém de uma língua/cultura diferente, é importante fazer uma aprendizagem da língua (ou no mínimo, ter uma terceira língua comum) e dos costumes para poder comunicar plenamente. Isso pode ser essencial, para expressarmos adequadamente os nossos pensamentos/sentimentos de forma que, no outro contexto cultural, seja perceptível o que dizemos. Assim torna-se igualmente necessário, no processo educativo, que os seus principais actores (pais, professores e outros educadores) saibam aprender a “língua” e os costumes dos “estrangeiros” (não de outra terra, mas de outro tempo) que vivem nas nossas escolas.
Se o sistema educativo não tornar hábito estruturante o estudo e a compreensão dos seus estudantes, em cada segmento do tempo e do espaço, corre o risco de elevada taxa de ineficácia e concluir como frustrante a sua acção.
Com Scolari
Sete dias passados sobre a noite escura de Alvalade, pode ser que a poeira já tenha assentado e possamos voltar ao tema, com a serenidade e lucidez que faltaram nos últimos dias.
Recuperando o essencial da história, Portugal fez uma dupla jornada de futebol, com a Polónia e a Sérvia, que correu mal. De situação vitoriosa até cinco minutos do fim, consentimos, em cada jogo, um golo azarado que nos custou, no somatório, quatro pontos. No jogo de Alvalade, o cair do pano trouxe adicionalmente um episódio triste em que um jogador sérvio provocou e tentou agredir Luís Filipe Scolari – valendo-lhe um cartão vermelho do árbitro – e o técnico respondeu irreflectidamente com uma tentativa de agressão. No dia seguinte, o técnico da selecção portuguesa, em conferência de imprensa, pediu desculpa aos portugueses e à UEFA pela sua atitude. Estes são, sinteticamente, os factos.
Espantosamente, o resultado foi a crucifixão pública de Scolari, como bode expiatório da frustração nacional. Nem o pedido de desculpas foi suficiente. Extraordinário.. Ninguém poupou palavra duras, condenações veementes ou pedidos de demissão. Como se tudo o que Scolari já fez ao serviço da selecção fosse nada e se um erro fosse tudo. Que injustiça flagrante!
Somos uma gente muito curiosa. Noutros tempos, numa atitude automática, gritaríamos – com razão - contra o árbitro (golo em fora-de-jogo), lamentaríamos o azar de sofrer um golo estranho a quatro minutos do fim e estaríamos, primeiro que tudo, a condenar o jogador sérvio que iniciou o episódio e a defender o nosso técnico. Agora, a irracionalidade voltou-se contra os da casa.
Imagine-se, por um instante, que tínhamos tido um pouco menos de azar e os jogos tinham acabado com o resultado dos 80 minutos e que ninguém tinha perdido a cabeça. Nesta altura, estávamos apurados para o Europeu e a laurear o treinador que, mais uma vez, nos levava a uma grande competição internacional. O nosso herói!
Só que os heróis também erram. São humanos. Mas poucos, no entanto, o admitem e pedem desculpa. E essa foi a grandeza de Luís Filipe. Quantos dos nossos heróis públicos que cometeram erros foram capazes de, em menos de 24 horas, pedir desculpa? Alguns, hipocritamente, sublinharam que, ainda assim, Scolari não tinha pedido desculpa ao jogador. Mas, era expectável fazê-lo, unilateralmente, quando a agressão foi iniciada pelo sérvio? Honestamente: é assim que cada um nós faz, na sua vida? Bom era...
A quatro jogos decisivos para o apuramento para o Euro, em que todos seremos poucos para não falhar o objectivo, deixámos vir à superfície a nossa veia suicida que Unamuno falava. Neste caso, além da insensata tendência suicida, mostramos outro péssimo defeito: a ingratidão.
Por isso, hoje e ainda a tempo, importa dizer: Scolari, estamos contigo, nos bons e, sobretudo, nos maus momentos. Os erros reconhecidos e emendados só servem para aprender. Vamos em frente! Esperam-nos quatro vitórias...
Recuperando o essencial da história, Portugal fez uma dupla jornada de futebol, com a Polónia e a Sérvia, que correu mal. De situação vitoriosa até cinco minutos do fim, consentimos, em cada jogo, um golo azarado que nos custou, no somatório, quatro pontos. No jogo de Alvalade, o cair do pano trouxe adicionalmente um episódio triste em que um jogador sérvio provocou e tentou agredir Luís Filipe Scolari – valendo-lhe um cartão vermelho do árbitro – e o técnico respondeu irreflectidamente com uma tentativa de agressão. No dia seguinte, o técnico da selecção portuguesa, em conferência de imprensa, pediu desculpa aos portugueses e à UEFA pela sua atitude. Estes são, sinteticamente, os factos.
Espantosamente, o resultado foi a crucifixão pública de Scolari, como bode expiatório da frustração nacional. Nem o pedido de desculpas foi suficiente. Extraordinário.. Ninguém poupou palavra duras, condenações veementes ou pedidos de demissão. Como se tudo o que Scolari já fez ao serviço da selecção fosse nada e se um erro fosse tudo. Que injustiça flagrante!
Somos uma gente muito curiosa. Noutros tempos, numa atitude automática, gritaríamos – com razão - contra o árbitro (golo em fora-de-jogo), lamentaríamos o azar de sofrer um golo estranho a quatro minutos do fim e estaríamos, primeiro que tudo, a condenar o jogador sérvio que iniciou o episódio e a defender o nosso técnico. Agora, a irracionalidade voltou-se contra os da casa.
Imagine-se, por um instante, que tínhamos tido um pouco menos de azar e os jogos tinham acabado com o resultado dos 80 minutos e que ninguém tinha perdido a cabeça. Nesta altura, estávamos apurados para o Europeu e a laurear o treinador que, mais uma vez, nos levava a uma grande competição internacional. O nosso herói!
Só que os heróis também erram. São humanos. Mas poucos, no entanto, o admitem e pedem desculpa. E essa foi a grandeza de Luís Filipe. Quantos dos nossos heróis públicos que cometeram erros foram capazes de, em menos de 24 horas, pedir desculpa? Alguns, hipocritamente, sublinharam que, ainda assim, Scolari não tinha pedido desculpa ao jogador. Mas, era expectável fazê-lo, unilateralmente, quando a agressão foi iniciada pelo sérvio? Honestamente: é assim que cada um nós faz, na sua vida? Bom era...
A quatro jogos decisivos para o apuramento para o Euro, em que todos seremos poucos para não falhar o objectivo, deixámos vir à superfície a nossa veia suicida que Unamuno falava. Neste caso, além da insensata tendência suicida, mostramos outro péssimo defeito: a ingratidão.
Por isso, hoje e ainda a tempo, importa dizer: Scolari, estamos contigo, nos bons e, sobretudo, nos maus momentos. Os erros reconhecidos e emendados só servem para aprender. Vamos em frente! Esperam-nos quatro vitórias...
Sempre mais alto
Numa odisseia sem fim, João Garcia tem vindo a conquistar os picos mais altos do mundo. Agora, num ciclo entre montanhas acima dos 8.000 metros de altitude, o nosso alpinista-mor continua o seu caminho. Tem já oito “troféus” e quer chegar ao restrito grupo de 14 pessoas que conseguiram vencer os 14 cumes montanhosos mais imponentes. Neste roteiro, em Julho passado, chegou ao pico da segunda montanha mais alta do mundo, a K2, com 8.611 metros de altitude, na fronteira entre a China e o Paquistão. A última etapa durou 15 horas, sem o auxilio de oxigénio artificial e enfrentando uma morfologia do terreno muito hostil. Mas venceu-a.
A entrar nos quarenta anos, este português notável diverte-se a procurar ultrapassar-se todos os dias. Quem já o viu e ouviu, por exemplo em entrevistas na televisão, ficou, por certo, impressionado com a sua calma e serenidade. É como se não fosse nada. Mas chegar onde nunca tinha ido, transformar obstáculos em vitórias, tornar possível o impossível são alguns dos seus desígnios. Ele é a expressão vivida de um “sempre mais alto”.
É bom, no entanto, recordar que nesta carreira notável de João Garcia nem tudo tem sido rosas. Numa das escaladas, quando conquistou o Everest (8.848 m), via a sua vida em perigo, perdeu as pontas dos dedos e do nariz e o seu companheiro de escalada, Pascal Debrouwer, morreu na descida.
Muitos de nós interrogar-nos-emos sobre o sentido de vencer montanhas. Que acrescenta isso ao mundo? Os mais materialistas, de pés bem assentes na terra, perguntarão porquê gastar tempo e dinheiro com isto. Os mais medrosos, desdenharão da sua coragem, como é típico. Todos, pensaremos se é justo arriscar a vida nestas escaladas.
Independentemente das respostas que cada um, na sua circunstância, encontre, é óbvio que João Garcia devia ser uma referência nacional. Como ele, todos nós, temos as nossas montanhas para vencer e riscos próprios para correr. Á nossa escala, no nosso quotidiano, muitos são os obstáculos com que nos deparamos. Alguns, por mais impossível que pareça, são tão agrestes como os picos do Everest. Perante eles, precisamos de encontrar coragem para não lhes virar as costas e determinação para os vencer. Competir connosco próprios para alcançar os mais altos cumes deveria ser a nossa ambição. Por isso, como Garcia, precisamos ambicionar ir sempre mais alto, numa espiral de aperfeiçoamento, em busca dos objectivos que traçámos para a nossa vida. E perante as inevitáveis derrotas e humilhações, precisamos estar decididos a recomeçar. De novo, com a mesma fé da primeira vez e com a sabedoria do que já aprendemos no amargo das derrotas. Dessa forma, transformaremos as cicatrizes em alavanca para a vitória certa que nos espera. E, um dia, quando a etapa final chegar, que nos encontre a lutar para chegar sempre mais alto.
A entrar nos quarenta anos, este português notável diverte-se a procurar ultrapassar-se todos os dias. Quem já o viu e ouviu, por exemplo em entrevistas na televisão, ficou, por certo, impressionado com a sua calma e serenidade. É como se não fosse nada. Mas chegar onde nunca tinha ido, transformar obstáculos em vitórias, tornar possível o impossível são alguns dos seus desígnios. Ele é a expressão vivida de um “sempre mais alto”.
É bom, no entanto, recordar que nesta carreira notável de João Garcia nem tudo tem sido rosas. Numa das escaladas, quando conquistou o Everest (8.848 m), via a sua vida em perigo, perdeu as pontas dos dedos e do nariz e o seu companheiro de escalada, Pascal Debrouwer, morreu na descida.
Muitos de nós interrogar-nos-emos sobre o sentido de vencer montanhas. Que acrescenta isso ao mundo? Os mais materialistas, de pés bem assentes na terra, perguntarão porquê gastar tempo e dinheiro com isto. Os mais medrosos, desdenharão da sua coragem, como é típico. Todos, pensaremos se é justo arriscar a vida nestas escaladas.
Independentemente das respostas que cada um, na sua circunstância, encontre, é óbvio que João Garcia devia ser uma referência nacional. Como ele, todos nós, temos as nossas montanhas para vencer e riscos próprios para correr. Á nossa escala, no nosso quotidiano, muitos são os obstáculos com que nos deparamos. Alguns, por mais impossível que pareça, são tão agrestes como os picos do Everest. Perante eles, precisamos de encontrar coragem para não lhes virar as costas e determinação para os vencer. Competir connosco próprios para alcançar os mais altos cumes deveria ser a nossa ambição. Por isso, como Garcia, precisamos ambicionar ir sempre mais alto, numa espiral de aperfeiçoamento, em busca dos objectivos que traçámos para a nossa vida. E perante as inevitáveis derrotas e humilhações, precisamos estar decididos a recomeçar. De novo, com a mesma fé da primeira vez e com a sabedoria do que já aprendemos no amargo das derrotas. Dessa forma, transformaremos as cicatrizes em alavanca para a vitória certa que nos espera. E, um dia, quando a etapa final chegar, que nos encontre a lutar para chegar sempre mais alto.
Três Ases
Por alguma razão teremos nas canções de escárnio e maldizer um dos primeiros referenciais da nossa literatura. Desde sempre, a má-língua é o passatempo nacional preferido e o “cortar na casaca” figura como o melhor que somos capazes na costura social. Entre todos os alvos, na liderança de qualquer ranking de destinatários de eleição, estão os políticos.
Na boca de qualquer português que se preze está sempre pronta uma história, um impropério, uma chacota ou uma acusação dirigida a um político. A todos e a todo o tempo. Qual saco de boxe, sofrem todos os murros da nossa desconfiança. Neste contexto, entre as profissões mais consideradas, não espanta que a política surja em último lugar.
Não se nega aqui que existam maus exemplos. É verdade que pela política passaram tristes casos de corrupção, de incompetência, de demagogia ou de falta de sentido de serviço público. Mas será só na política que isso acontece? Serão os políticos portugueses piores do que a média dos outros portugueses? Ou, tal como em qualquer área, na política há um inevitável – ainda que inaceitável - coeficiente de incompetentes e de corruptos?
Proponho um exercício. Em que áreas Portugal dispõe, nos nossos dias, de vultos que se destaquem a nível mundial? No futebol, certamente, temos uma mão cheia de personalidades de nível planetário. No atletismo, temos dois campeões do mundo e mais alguns notáveis. Na literatura, teremos Saramago e pouco mais. Na ciência, Damásio é o único exemplo evidente. Empresários?
E na política? Há políticos portugueses reconhecidos internacionalmente?
Durão Barroso preside ao Conselho da União Europeia, António Guterres é o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados e, mais recentemente, Jorge Sampaio foi escolhido para uma relevante função no quadro das Nações Unidas, enquanto responsável da Aliança de Civilizações. Pois é...três ases, de nível superior, à escala global. Três políticos portugueses que, no cenário internacional, mereceram confiança de parceiros exigentes, em processos de selecção competitivos. Claro que alguns de imediato, desdenharão deste facto. Mas o que é certo é que fica a dúvida se não serão os políticos portugueses melhores que a média nacional nas restantes áreas.
Assim, talvez valesse a pena rever criticamente a nossa atitude “anti-políticos” tão arreigada, quanto irracional. O exercício da política é indispensável para a vida em sociedade. O serviço público e a defesa do bem comum são deveres essenciais que devem ser cumpridos através da política. Desincentivar a actividade política é suicida.
Devemos ser críticos e exigentes perante a política, sem dúvida. Tanto mais exigentes, quanto mais coerentes formos. Nomeadamente fazendo, através da participação política, melhor do que o que desdenhamos. Porque, na verdade, há uma outra categoria onde teremos certamente personalidades de nível internacional: na categoria de treinadores de bancada.
Na boca de qualquer português que se preze está sempre pronta uma história, um impropério, uma chacota ou uma acusação dirigida a um político. A todos e a todo o tempo. Qual saco de boxe, sofrem todos os murros da nossa desconfiança. Neste contexto, entre as profissões mais consideradas, não espanta que a política surja em último lugar.
Não se nega aqui que existam maus exemplos. É verdade que pela política passaram tristes casos de corrupção, de incompetência, de demagogia ou de falta de sentido de serviço público. Mas será só na política que isso acontece? Serão os políticos portugueses piores do que a média dos outros portugueses? Ou, tal como em qualquer área, na política há um inevitável – ainda que inaceitável - coeficiente de incompetentes e de corruptos?
Proponho um exercício. Em que áreas Portugal dispõe, nos nossos dias, de vultos que se destaquem a nível mundial? No futebol, certamente, temos uma mão cheia de personalidades de nível planetário. No atletismo, temos dois campeões do mundo e mais alguns notáveis. Na literatura, teremos Saramago e pouco mais. Na ciência, Damásio é o único exemplo evidente. Empresários?
E na política? Há políticos portugueses reconhecidos internacionalmente?
Durão Barroso preside ao Conselho da União Europeia, António Guterres é o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados e, mais recentemente, Jorge Sampaio foi escolhido para uma relevante função no quadro das Nações Unidas, enquanto responsável da Aliança de Civilizações. Pois é...três ases, de nível superior, à escala global. Três políticos portugueses que, no cenário internacional, mereceram confiança de parceiros exigentes, em processos de selecção competitivos. Claro que alguns de imediato, desdenharão deste facto. Mas o que é certo é que fica a dúvida se não serão os políticos portugueses melhores que a média nacional nas restantes áreas.
Assim, talvez valesse a pena rever criticamente a nossa atitude “anti-políticos” tão arreigada, quanto irracional. O exercício da política é indispensável para a vida em sociedade. O serviço público e a defesa do bem comum são deveres essenciais que devem ser cumpridos através da política. Desincentivar a actividade política é suicida.
Devemos ser críticos e exigentes perante a política, sem dúvida. Tanto mais exigentes, quanto mais coerentes formos. Nomeadamente fazendo, através da participação política, melhor do que o que desdenhamos. Porque, na verdade, há uma outra categoria onde teremos certamente personalidades de nível internacional: na categoria de treinadores de bancada.
23 agosto 2007
Futebol intercultural
Começou mais uma Liga de futebol. Esta edição afirma, de uma forma inequívoca, uma tendência em que o futebol se define, através dos seus principais actores, como um fenómeno global, sem fronteiras e fortemente internacionalizado. Cada campeonato de futebol na Europa – não fugindo Portugal à regra – vê competir no seu seio equipas multinacionais, compostas por jogadores de todo o Mundo. Cada clube é, de certa maneira, uma selecção mundial de valores futebolísticos, consoante a capacidade financeira e de selecção de talentos de cada equipa dirigente, não importando a sua origem nacional ou étnica. Assim, a edição de 2007/2008 da Liga portuguesa tem inscritos 215 atletas estrangeiros, que representam 52% do total de jogadores este ano. Provêem de 39 países diferentes, de quatro continentes e falam 17 línguas diferentes.
Destacam-se neste cenário, entre outros, o Boavista com 14 nacionalidades na mesma equipa, incluindo jogadores do Liechtenstein, Mali, Nigéria, Áustria ou França. Também o Benfica regista dez nacionalidades de quatro continentes, juntando um chinês com norte-americano ou um paraguaio com costa-marfinense. Este cenário faz do futebol um dos mais interessantes terrenos do diálogo intercultural. A partir das diferenças de línguas e de culturas, cada conjunto heterogéneo de jogadores vai ter de se transformar numa Equipa. Criar unidade a partir da diversidade. Jogar articulado em função de um objectivo comum. Viver em regime de interdependência, onde ninguém vence sozinho. Não há melhor metáfora do que a que nos espera no futuro próximo. O futebol é, neste aspecto, um laboratório das novas sociedades.
Há, naturalmente, outro eixo desta realidade. Também não há fronteiras para os jogadores – e treinadores – portugueses, estando muitos dos nossos melhores espalhados por vários clubes no estrangeiro, também em equipas fortemente multiculturais. Quando olhamos a nossa selecção nacional, verificamos que 2/3 dos jogadores não jogam em Portugal. Com vantagens evidentes para eles e para todos nós. Não só afirmam o nome de Portugal nos vários campeonatos onde vingam (basta pensar em Ronaldo ou Ricardo Carvalho em Inglaterra) como adquirem uma experiência internacional que os faz desenvolver fortemente as suas capacidades. E dessa evolução tem beneficiado, nomeadamente, a nossa Selecção.
Alguns mais ‘nacionalófilos’, seguidores de uma desfasado sentimento de ‘orgulhosamente sós’, contestam esta tendência, preferindo uma versão mais paroquial do campeonato nacional. Estão no seu direito, mas em contramão com o curso da História. As nossas sociedades serão cada vez mais multiculturais como consequência de uma forte mobilidade humana. Encontraremos a diversidade cultural e étnica como regra e vamos ter de a saber gerir. A globalização também se impõe no futebol, como em toda a sociedade. E se a soubermos gerir, tiraremos grandes benefícios dela.
Correio da Manhã, 15/8/2007
Destacam-se neste cenário, entre outros, o Boavista com 14 nacionalidades na mesma equipa, incluindo jogadores do Liechtenstein, Mali, Nigéria, Áustria ou França. Também o Benfica regista dez nacionalidades de quatro continentes, juntando um chinês com norte-americano ou um paraguaio com costa-marfinense. Este cenário faz do futebol um dos mais interessantes terrenos do diálogo intercultural. A partir das diferenças de línguas e de culturas, cada conjunto heterogéneo de jogadores vai ter de se transformar numa Equipa. Criar unidade a partir da diversidade. Jogar articulado em função de um objectivo comum. Viver em regime de interdependência, onde ninguém vence sozinho. Não há melhor metáfora do que a que nos espera no futuro próximo. O futebol é, neste aspecto, um laboratório das novas sociedades.
Há, naturalmente, outro eixo desta realidade. Também não há fronteiras para os jogadores – e treinadores – portugueses, estando muitos dos nossos melhores espalhados por vários clubes no estrangeiro, também em equipas fortemente multiculturais. Quando olhamos a nossa selecção nacional, verificamos que 2/3 dos jogadores não jogam em Portugal. Com vantagens evidentes para eles e para todos nós. Não só afirmam o nome de Portugal nos vários campeonatos onde vingam (basta pensar em Ronaldo ou Ricardo Carvalho em Inglaterra) como adquirem uma experiência internacional que os faz desenvolver fortemente as suas capacidades. E dessa evolução tem beneficiado, nomeadamente, a nossa Selecção.
Alguns mais ‘nacionalófilos’, seguidores de uma desfasado sentimento de ‘orgulhosamente sós’, contestam esta tendência, preferindo uma versão mais paroquial do campeonato nacional. Estão no seu direito, mas em contramão com o curso da História. As nossas sociedades serão cada vez mais multiculturais como consequência de uma forte mobilidade humana. Encontraremos a diversidade cultural e étnica como regra e vamos ter de a saber gerir. A globalização também se impõe no futebol, como em toda a sociedade. E se a soubermos gerir, tiraremos grandes benefícios dela.
Correio da Manhã, 15/8/2007
O salário dos políticos
Numa entrevista concedida ao ‘Expresso’, no passado sábado, o dr. Paulo Macedo, ex-director-geral dos Impostos, desfia um conjunto de argumentos que explicam muito do seu sucesso. Não é comum, em Portugal, termos um alto funcionário público, em funções particularmente sensíveis co-mo a cobrança de impostos, que tenha granjeado um tão largo apoio e expressivo respeito. Torna-se cada vez mais evidente que se perdeu – por agora – um servidor público de primeira água. Fica-se na expectativa de que, mais tarde ou mais cedo, Paulo Macedo possa regressar e, particularmente, pondere uma intervenção política, enquanto espaço nobre de serviço à comunidade. Fazem falta homens como ele.
Dos muitos aspectos relevantes da entrevista, a questão do salário dos políticos e dos altos funcionários do Estado mereceu destaque. É dos temas mais glosados na demagogia populista, no quadro sempre apreciado de ‘malhar’ nos políticos. Por isso, ninguém ousa corrigir esta situação.
Olhando para os cargos de eleição ou nomeação política, devemos situá-los como missões de serviço público. Durante um período de tempo, obrigatoriamente limitado, alguns são chamados a cumprir esse serviço ao bem comum. Sendo naturalmente um trabalho a tempo inteiro e de dedicação exclusiva, deve ser remunerado. Como? Devemos referenciá-los ao salário médio dos portugueses ou ao topo à escala da Função Pública? Este sistema de hierarquia leva-nos, como denuncia Paulo Macedo, a que o Presidente da República ou o primeiro-ministro ganhem tanto quanto um jovem director de marketing de uma empresa média e significativamente menos do que qualquer gestor público.
Mas, se organizássemos o sistema remuneratório atendendo à complexidade e desgaste do cargo ou aos valores de mercado para funções equiparadas, aceitando pagar salários ao nível do mundo empresarial, afastaríamos ainda mais os cidadãos da política e a situação tornar-se-ia insustentável.
Creio, no entanto, que há uma solução intermédia e equilibrada. Sendo uma missão de serviço público, a dimensão salarial no exercício de cargos políticos deveria ser neutra. Não devia contar nada. Isto é, o Estado deveria remunerar os políticos exactamente ao mesmo nível do que ganhavam anteriormente. Com um valor apurado a partir da média dos últimos três anos dos seus rendimentos declarados no IRS, teríamos provavelmente o valor justo. Nuns casos mais alto, noutros mais baixo. Como era antes da política, assim se manteria. Este modelo traria várias vantagens. Desde logo, ninguém decidiria pelo exercício de um cargo político em função do vencimento, pois ficaria exactamente na mesma. Alguns não excluiriam liminarmente este serviço público, como hoje acontece, por perderem milhares de euros, nem outros se candidatariam, pois essa opção não lhes traria nenhuma melhoria em relação à sua situação financeira anterior. E, no fim, ganharíamos todos.
Correio da Manhã, 8/8/2007
Dos muitos aspectos relevantes da entrevista, a questão do salário dos políticos e dos altos funcionários do Estado mereceu destaque. É dos temas mais glosados na demagogia populista, no quadro sempre apreciado de ‘malhar’ nos políticos. Por isso, ninguém ousa corrigir esta situação.
Olhando para os cargos de eleição ou nomeação política, devemos situá-los como missões de serviço público. Durante um período de tempo, obrigatoriamente limitado, alguns são chamados a cumprir esse serviço ao bem comum. Sendo naturalmente um trabalho a tempo inteiro e de dedicação exclusiva, deve ser remunerado. Como? Devemos referenciá-los ao salário médio dos portugueses ou ao topo à escala da Função Pública? Este sistema de hierarquia leva-nos, como denuncia Paulo Macedo, a que o Presidente da República ou o primeiro-ministro ganhem tanto quanto um jovem director de marketing de uma empresa média e significativamente menos do que qualquer gestor público.
Mas, se organizássemos o sistema remuneratório atendendo à complexidade e desgaste do cargo ou aos valores de mercado para funções equiparadas, aceitando pagar salários ao nível do mundo empresarial, afastaríamos ainda mais os cidadãos da política e a situação tornar-se-ia insustentável.
Creio, no entanto, que há uma solução intermédia e equilibrada. Sendo uma missão de serviço público, a dimensão salarial no exercício de cargos políticos deveria ser neutra. Não devia contar nada. Isto é, o Estado deveria remunerar os políticos exactamente ao mesmo nível do que ganhavam anteriormente. Com um valor apurado a partir da média dos últimos três anos dos seus rendimentos declarados no IRS, teríamos provavelmente o valor justo. Nuns casos mais alto, noutros mais baixo. Como era antes da política, assim se manteria. Este modelo traria várias vantagens. Desde logo, ninguém decidiria pelo exercício de um cargo político em função do vencimento, pois ficaria exactamente na mesma. Alguns não excluiriam liminarmente este serviço público, como hoje acontece, por perderem milhares de euros, nem outros se candidatariam, pois essa opção não lhes traria nenhuma melhoria em relação à sua situação financeira anterior. E, no fim, ganharíamos todos.
Correio da Manhã, 8/8/2007
Meio vazio? Meio cheio?
É velha a história de quem, olhando o mesmo copo, o vê meio cheio ao lado de outra pessoa que o vê meio vazio. A realidade é assim mesmo: tem sempre esses dois lados, pois copos cheios, provavelmente, só no paraíso. A questão, no entanto, coloca-se quanto ao olhar tendencial que preferimos. Começamos por valorizar o que já temos ou preferimos olhar para o que falta? E quando o fazemos qual a consequência que daí retiramos?
Qualquer um de nós recorda imediatamente uma mão cheia de amigos que não conseguem ver mais do que copos sempre meio vazios. Não dão oportunidade para ver o lado positivo da realidade. Aliás, esse é um vício nacional e o pior do nosso fado. Já mais difícil é encontrar quem seja um caso típico de ver sempre o copo meio cheio. Parece mal, na nossa terra, ser optimista.
Nos últimos tempos, não é preciso, aliás, procurar muito para encontrar exemplos ilustrativos da onda negativa. Há dias, após o anúncio da extensão do abono de família, até ao terceiro mês de gravidez e a sua duplicação e triplicação para segundo e terceiro filhos, o título de um jornal sublinhava que talvez 10% dos nascimentos ficasse fora deste benefício e outras vozes limitaram-se a dizer que era insuficiente e tardio.
Copo meio vazio, pois. No dia seguinte, perante 400 milhões de euros de investimento na modernização do sistema educativo, nomeadamente através do forte reforço da disponibilização de tecnologias de informação na sala de aula, os comentários dividiram-se entre as tecnologias não serem o mais importante ou sobre episódio das crianças contratadas pela agência que preparou o evento.
Mais tarde, perante o lançamento da iniciativa ‘Casa Pronta’, que permite tratar com celeridade as questões de compra e venda de casa, prefere-se sublinhar a eventual inconstitucionalidade, despertada por um parecer jurídico encomendado pelos notários, que se sentem prejudicados nos seus interesses por este serviço. Poderíamos continuar a desfiar exemplos.
É evidente que parte deste fenómeno decorre dos jogos políticos no seu pior.
O maldizer, mesmo perante as coisas objectivamente boas, vive do bota abaixo ou na melhor das hipóteses do discurso do copo meio vazio. Note-se que se essa crítica fosse séria, poderia não ser má. Seria, nesse caso, um incentivo para encher o que falta do copo e, assim, seria útil para transformar a realidade. Mas não. Com esta atitude só se cultiva o desânimo e a descrença. Nunca gozamos o que já temos e não transformamos o que nos falta através da ambição de o conquistar.
Não nos contentamos, nem nos mobilizamos. Simplesmente, lamentamo-nos. E quem se lamenta, não chega a lado nenhum.
O grande desafio para todos nós passa por cultivar uma atitude simultaneamente positiva e realista, de quem reconhece que o copo está, ao mesmo tempo, meio cheio e meio vazio. Mas só com um olhar positivo, registando que o copo já está meio cheio, ganharemos energia para encher o que falta. E que ninguém encherá por nós.
Correio da Manhã, 1/8/2007
Qualquer um de nós recorda imediatamente uma mão cheia de amigos que não conseguem ver mais do que copos sempre meio vazios. Não dão oportunidade para ver o lado positivo da realidade. Aliás, esse é um vício nacional e o pior do nosso fado. Já mais difícil é encontrar quem seja um caso típico de ver sempre o copo meio cheio. Parece mal, na nossa terra, ser optimista.
Nos últimos tempos, não é preciso, aliás, procurar muito para encontrar exemplos ilustrativos da onda negativa. Há dias, após o anúncio da extensão do abono de família, até ao terceiro mês de gravidez e a sua duplicação e triplicação para segundo e terceiro filhos, o título de um jornal sublinhava que talvez 10% dos nascimentos ficasse fora deste benefício e outras vozes limitaram-se a dizer que era insuficiente e tardio.
Copo meio vazio, pois. No dia seguinte, perante 400 milhões de euros de investimento na modernização do sistema educativo, nomeadamente através do forte reforço da disponibilização de tecnologias de informação na sala de aula, os comentários dividiram-se entre as tecnologias não serem o mais importante ou sobre episódio das crianças contratadas pela agência que preparou o evento.
Mais tarde, perante o lançamento da iniciativa ‘Casa Pronta’, que permite tratar com celeridade as questões de compra e venda de casa, prefere-se sublinhar a eventual inconstitucionalidade, despertada por um parecer jurídico encomendado pelos notários, que se sentem prejudicados nos seus interesses por este serviço. Poderíamos continuar a desfiar exemplos.
É evidente que parte deste fenómeno decorre dos jogos políticos no seu pior.
O maldizer, mesmo perante as coisas objectivamente boas, vive do bota abaixo ou na melhor das hipóteses do discurso do copo meio vazio. Note-se que se essa crítica fosse séria, poderia não ser má. Seria, nesse caso, um incentivo para encher o que falta do copo e, assim, seria útil para transformar a realidade. Mas não. Com esta atitude só se cultiva o desânimo e a descrença. Nunca gozamos o que já temos e não transformamos o que nos falta através da ambição de o conquistar.
Não nos contentamos, nem nos mobilizamos. Simplesmente, lamentamo-nos. E quem se lamenta, não chega a lado nenhum.
O grande desafio para todos nós passa por cultivar uma atitude simultaneamente positiva e realista, de quem reconhece que o copo está, ao mesmo tempo, meio cheio e meio vazio. Mas só com um olhar positivo, registando que o copo já está meio cheio, ganharemos energia para encher o que falta. E que ninguém encherá por nós.
Correio da Manhã, 1/8/2007
Abstenção aos impostos?
Se todos somos obrigados a pagar impostos não deveríamos igualmente ser obrigados a votar? Ou, visto ao contrário, se podemos não votar porque não admitir também a abstenção nos impostos?
Embora possa parecer absurdo formular estas perguntas, creio que não o é. Ninguém está dispensado de pagar impostos, porque se considera – e bem – que nenhum de nós está isento de contribuir para o esforço colectivo de gerar receitas para que o Estado cumpra as suas funções, seja as de soberania, seja outras de cariz social, como a educação, a saúde ou a solidariedade social. Não há, por isso, a figura da abstenção no pagamento de impostos, ainda que alguém não concorde com a forma como são administrados. Todos somos convocados a dar o nosso contributo, porque o Estado somos nós.
Mas será a democracia em si mesma – representada nomeadamente através do voto em eleições – um bem menor do que qualquer uma destas funções do Estado sustentadas pelos nossos impostos? A resposta peremptória é ‘não’: a construção da democracia é um bem maior do que o financiamento do Estado. É mesmo através do sistema democrático representativo que se determinam a defesa do bem comum e a administração do interesse público. Se discordamos desta gestão é através da participação cívica – nomeadamente votando – que devemos expressar a nossa opinião. Por isso, ninguém pode ficar dispensado de expressar a sua voz, através dos mecanismos democráticos. Votar, mais do que um direito, é um dever cívico. A desvalorização da democracia, decorrente de ser igual ir votar ou não, produz uma degradação na qualidade do regime que, a prazo, todos pagaremos.
Vem isto ainda a propósito das últimas eleições intercalares para a Câmara de Lisboa, que evidenciaram uma taxa de abstenção altíssima. Seis em cada dez lisboetas não votaram. Essa é, aliás, a tendência crescente dos últimos actos eleitorais. Na análise explicativa que se seguiu assistiu-se a um discurso desculpabilizador dos eleitores. Ainda que sejam motivos com eventual fundamento, constituem uma resposta errada. A verdade é que não é admissível que um cidadão, podendo, não participe numa eleição. É a negação da democracia. Amargo é imaginar que durante tantos séculos, multidões lutaram pelo direito de voto: as minorias étnicas, as mulheres, os jovens... e agora que esse direito está adquirido outras multidões desprezam-no.
Para mais, o voto contempla a expressão de todos as vontades. Da opção por qualquer candidatura até à recusa de qualquer uma deles – voto branco – ou até à expressão de uma qualquer irritação, que anule o voto. Também por isso, não é admissível a abstenção. O nosso sistema democrático deveria reconsiderar a obrigatoriedade do voto, tal como acontece no Brasil. A penalização em relação às faltas injustificadas deveria ter como consequência, inspirada na Grécia Antiga, a perda temporária do estatuto de cidadão. Se não cumprir o dever de votar é demitir-se do estatuto de cidadão, que seja então assumido esse ónus pelos abstencionistas.
Correio da Manhã, 25/7/2007
Embora possa parecer absurdo formular estas perguntas, creio que não o é. Ninguém está dispensado de pagar impostos, porque se considera – e bem – que nenhum de nós está isento de contribuir para o esforço colectivo de gerar receitas para que o Estado cumpra as suas funções, seja as de soberania, seja outras de cariz social, como a educação, a saúde ou a solidariedade social. Não há, por isso, a figura da abstenção no pagamento de impostos, ainda que alguém não concorde com a forma como são administrados. Todos somos convocados a dar o nosso contributo, porque o Estado somos nós.
Mas será a democracia em si mesma – representada nomeadamente através do voto em eleições – um bem menor do que qualquer uma destas funções do Estado sustentadas pelos nossos impostos? A resposta peremptória é ‘não’: a construção da democracia é um bem maior do que o financiamento do Estado. É mesmo através do sistema democrático representativo que se determinam a defesa do bem comum e a administração do interesse público. Se discordamos desta gestão é através da participação cívica – nomeadamente votando – que devemos expressar a nossa opinião. Por isso, ninguém pode ficar dispensado de expressar a sua voz, através dos mecanismos democráticos. Votar, mais do que um direito, é um dever cívico. A desvalorização da democracia, decorrente de ser igual ir votar ou não, produz uma degradação na qualidade do regime que, a prazo, todos pagaremos.
Vem isto ainda a propósito das últimas eleições intercalares para a Câmara de Lisboa, que evidenciaram uma taxa de abstenção altíssima. Seis em cada dez lisboetas não votaram. Essa é, aliás, a tendência crescente dos últimos actos eleitorais. Na análise explicativa que se seguiu assistiu-se a um discurso desculpabilizador dos eleitores. Ainda que sejam motivos com eventual fundamento, constituem uma resposta errada. A verdade é que não é admissível que um cidadão, podendo, não participe numa eleição. É a negação da democracia. Amargo é imaginar que durante tantos séculos, multidões lutaram pelo direito de voto: as minorias étnicas, as mulheres, os jovens... e agora que esse direito está adquirido outras multidões desprezam-no.
Para mais, o voto contempla a expressão de todos as vontades. Da opção por qualquer candidatura até à recusa de qualquer uma deles – voto branco – ou até à expressão de uma qualquer irritação, que anule o voto. Também por isso, não é admissível a abstenção. O nosso sistema democrático deveria reconsiderar a obrigatoriedade do voto, tal como acontece no Brasil. A penalização em relação às faltas injustificadas deveria ter como consequência, inspirada na Grécia Antiga, a perda temporária do estatuto de cidadão. Se não cumprir o dever de votar é demitir-se do estatuto de cidadão, que seja então assumido esse ónus pelos abstencionistas.
Correio da Manhã, 25/7/2007
23 julho 2007
Casa António Vieira
Celebra-se hoje mais um aniversário da morte do ilustre Pe. António Vieira (1608/1697). Este português notável foi polifacetado e desconcertante, tendo sido missionário, político, diplomata, orador e intelectual, num século conturbado e inquietante. Vieira é, ainda e sempre, uma referência da humanidade.
Homem de Fé, notabilizou-se pelos seus monumentais sermões, mas também pela missão exemplar de dedicação aos índios do Brasil. Para eles conseguiu, contra fúria dos colonos, em 1655, um decreto do rei que os protegia contra a escravidão feroz. Quando poucos viam nos índios sequer seres humanos, Vieira esteve a seu lado, aprendendo as suas línguas e correndo perigos inimagináveis nas selvas profundas do Maranhão.
Intensamente empenhado no destino da sua Pátria - para a qual sonhou a utopia do Quinto Império - foi pragmático na política e controverso na diplomacia, mas acabou sempre à margem do politicamente correcto. Desafiou o futuro e, procurando perscrutar os seus caminhos, imaginou novos mundos. Enfrentou por isso, inimigos infindáveis, entre os quais, todos os poderes instituídos: a Corte, a Inquisição e os interesses económicos. Estando no mundo, Vieira não era daquele mundo.
Também para a cultura portuguesa, a sua memória ressoa como um dos nossos maiores expoentes. Exímio arquitecto das palavras e dos conceitos, orador distinto, mereceu de Pessoa o título de Imperador da Língua Portuguesa.
Polémico, como poucos, António Vieira não era, no entanto, um ser perfeito, e até nisso era profundamente humano. Não ficou como uma lenda, nem sequer como um santo. Sonhou sonhos impossíveis, viu miragens que se esfumaram e errou muitas das suas geniais suposições. Mas nunca teve medo, nem se ficou no conforto dos moles. Foi ousado, corajoso e fiel à sua consciência, por mais que isso implicasse ir contra o Mundo.
Portugal, como tantas vezes acontece perante os nossos maiores, tem-lhe dedicado pouca atenção. Para o próximo ano, em 6 de Fevereiro de 2008, comemorar-se-á o IVº Centenário do seu nascimento, ocorrido nesta cidade de Lisboa, junto à Sé.
Temos defendido que, por essa ocasião, deveria ser criada em sua memória, a Casa António Vieira, por forma a que se tornasse mais presente a sua herança. Preferencialmente junto à Sé de Lisboa, seria um espaço privilegiado para que se continuasse a celebrar esta forma de ser português, sempre aberta ao mundo, através de um museu, de uma biblioteca e de um centro de estudos. Da Câmara de Lisboa, do Governo da República e de mecenas interessados depende a concretização da Casa António Vieira.
Como no tempo de Vieira, Portugal precisa de se ultrapassar e reencontrar o seu destino no mundo. Como na sua época, o desafio do interculturalismo, da defesa da diversidade, do diálogo entre crentes e não crentes, bem como a promoção da dignidade humana são desafios em agenda. Por isso, a Casa António Vieira seria uma excelente forma de, quatro séculos depois, continuar a construir a história do futuro.
Correio da Manhã, 18 Julho 2007
Homem de Fé, notabilizou-se pelos seus monumentais sermões, mas também pela missão exemplar de dedicação aos índios do Brasil. Para eles conseguiu, contra fúria dos colonos, em 1655, um decreto do rei que os protegia contra a escravidão feroz. Quando poucos viam nos índios sequer seres humanos, Vieira esteve a seu lado, aprendendo as suas línguas e correndo perigos inimagináveis nas selvas profundas do Maranhão.
Intensamente empenhado no destino da sua Pátria - para a qual sonhou a utopia do Quinto Império - foi pragmático na política e controverso na diplomacia, mas acabou sempre à margem do politicamente correcto. Desafiou o futuro e, procurando perscrutar os seus caminhos, imaginou novos mundos. Enfrentou por isso, inimigos infindáveis, entre os quais, todos os poderes instituídos: a Corte, a Inquisição e os interesses económicos. Estando no mundo, Vieira não era daquele mundo.
Também para a cultura portuguesa, a sua memória ressoa como um dos nossos maiores expoentes. Exímio arquitecto das palavras e dos conceitos, orador distinto, mereceu de Pessoa o título de Imperador da Língua Portuguesa.
Polémico, como poucos, António Vieira não era, no entanto, um ser perfeito, e até nisso era profundamente humano. Não ficou como uma lenda, nem sequer como um santo. Sonhou sonhos impossíveis, viu miragens que se esfumaram e errou muitas das suas geniais suposições. Mas nunca teve medo, nem se ficou no conforto dos moles. Foi ousado, corajoso e fiel à sua consciência, por mais que isso implicasse ir contra o Mundo.
Portugal, como tantas vezes acontece perante os nossos maiores, tem-lhe dedicado pouca atenção. Para o próximo ano, em 6 de Fevereiro de 2008, comemorar-se-á o IVº Centenário do seu nascimento, ocorrido nesta cidade de Lisboa, junto à Sé.
Temos defendido que, por essa ocasião, deveria ser criada em sua memória, a Casa António Vieira, por forma a que se tornasse mais presente a sua herança. Preferencialmente junto à Sé de Lisboa, seria um espaço privilegiado para que se continuasse a celebrar esta forma de ser português, sempre aberta ao mundo, através de um museu, de uma biblioteca e de um centro de estudos. Da Câmara de Lisboa, do Governo da República e de mecenas interessados depende a concretização da Casa António Vieira.
Como no tempo de Vieira, Portugal precisa de se ultrapassar e reencontrar o seu destino no mundo. Como na sua época, o desafio do interculturalismo, da defesa da diversidade, do diálogo entre crentes e não crentes, bem como a promoção da dignidade humana são desafios em agenda. Por isso, a Casa António Vieira seria uma excelente forma de, quatro séculos depois, continuar a construir a história do futuro.
Correio da Manhã, 18 Julho 2007
Respeito
Há dois anos, assistindo a uma cerimónia oficial no Canadá, registei a solenidade com que a assistência de uma conferência internacional se levantava para receber o mais alto representante da nação. Não raras vezes vi repetido este gesto de respeito institucional em diferentes países, perante diversos órgãos de soberania. Excepto, por regra, em Portugal. Na mesma conferência internacional, aquando da sua realização no nosso país, toda a gente permaneceu sentada, perante a entrada do Primeiro-ministro na sala. Vi já, repetidas vezes, em visitas de altos responsáveis do Estado a uma qualquer instituição, os funcionários permanecerem sentados enquanto são cumprimentos pelo visitante. Pior ainda, naturalmente, quando se vão registando insultos ou enxovalhos a um Presidente da República ou Primeiro-ministro, em nome de uma suposta liberdade de expressão. Não se trata, note-se, de uma questão antiquada de “boa-educação”, embora também o seja. É muito mais do que isso. Trata-se do valor que atribuímos às instituições e ao respeito por quem é por elas representado, ou seja, por todos nós.
A dessacralização do poder que se desenvolveu em Portugal após o 25 de Abril teve, certamente, os seus méritos. A aproximação das instituições ao povo, e vice-versa, favorece a democracia. O afastamento do temor reverencial ajuda à participação e coloca-nos num patamar de igualdade cívica. Mas isso não significa – longe disso – a destruição do respeito institucional.
As instituições do Estado – entre outras - merecem todo o respeito. Particularmente os órgãos de soberania, enquanto legítimos representantes do povo, são detentores de uma dignidade que deve ser preservada. Não se trata simplesmente do senhor A ou da senhora B, que por si só já mereceriam o respeito devido a qualquer pessoa, mas sim de quem, representando o Estado, nos representa a todos nós. Isto, não equivale, porém, à ausência de crítica. Pelo contrário: quanto mais respeitadores, mais exigentes para com os detentores de cargos públicos.
É evidente, por exemplo, que esta exigência de respeito institucional não se aplica exclusivamente aos cidadãos anónimos. A responsabilidade de evidenciar respeito pelas instituições começa, desde logo, nos seus próprios protagonistas. Por exemplo, o triste espectáculo que alguns deputados dão ao desrespeitarem completamente, em pleno hemiciclo, quem está no uso da palavra, conversando animadamente com os seus vizinhos ou lançando impropérios, não contribui para o prestígio da instituição. Não se pode pedir respeito por quem não se respeita.
Este respeito, no que se refere aos símbolos nacionais, teve, nos últimos anos, um grande avanço, curiosamente, através do futebol. Hoje em dia ninguém canta sentado o hino nacional, num qualquer estádio. Pelo contrário, de pé, vibramos com esse momento de sintonia colectiva. Será muito difícil estender essa atitude às instituições que nos representam?
Correio da Manhã, 10 Julho 2007
A dessacralização do poder que se desenvolveu em Portugal após o 25 de Abril teve, certamente, os seus méritos. A aproximação das instituições ao povo, e vice-versa, favorece a democracia. O afastamento do temor reverencial ajuda à participação e coloca-nos num patamar de igualdade cívica. Mas isso não significa – longe disso – a destruição do respeito institucional.
As instituições do Estado – entre outras - merecem todo o respeito. Particularmente os órgãos de soberania, enquanto legítimos representantes do povo, são detentores de uma dignidade que deve ser preservada. Não se trata simplesmente do senhor A ou da senhora B, que por si só já mereceriam o respeito devido a qualquer pessoa, mas sim de quem, representando o Estado, nos representa a todos nós. Isto, não equivale, porém, à ausência de crítica. Pelo contrário: quanto mais respeitadores, mais exigentes para com os detentores de cargos públicos.
É evidente, por exemplo, que esta exigência de respeito institucional não se aplica exclusivamente aos cidadãos anónimos. A responsabilidade de evidenciar respeito pelas instituições começa, desde logo, nos seus próprios protagonistas. Por exemplo, o triste espectáculo que alguns deputados dão ao desrespeitarem completamente, em pleno hemiciclo, quem está no uso da palavra, conversando animadamente com os seus vizinhos ou lançando impropérios, não contribui para o prestígio da instituição. Não se pode pedir respeito por quem não se respeita.
Este respeito, no que se refere aos símbolos nacionais, teve, nos últimos anos, um grande avanço, curiosamente, através do futebol. Hoje em dia ninguém canta sentado o hino nacional, num qualquer estádio. Pelo contrário, de pé, vibramos com esse momento de sintonia colectiva. Será muito difícil estender essa atitude às instituições que nos representam?
Correio da Manhã, 10 Julho 2007
As diferenças
É imaginável que, após dez anos passados no poder, um primeiro-ministro saia pelo seu pé, sem ser derrotado e seja aplaudido por amigos e inimigos? Que dele os adversários digam, na hora da sua saída, que “ninguém pode duvidar do seu imenso esforço em termos de serviço público”? Que outros – também adversários - refiram a sua “infalível cortesia”? Ou ainda, que o seu sucessor diga “o quer que venhamos a conseguir no futuro, consegui-lo-emos porque estamos sentados em cima dos seus ombros”?
Parece uma história implausível, quase extraterrestre, tanto mais que não se trata de um elogio fúnebre. Mas assim aconteceu, na passada semana, com Blair, na sua despedida do Parlamento inglês. Ninguém lhe regateou os elogios que, na política, são escassos entre adversários. Quiseram fazê-lo de pé, numa ovação, para que não restassem dúvidas. O primeiro-ministro inglês, respondeu da mesma moeda, a todos – partiários e adversários - desejando o bem. Parece quase um retrato piegas, de filme cor-de-rosa. Tão habituados que estamos na política a não dar espaço nem crédito ao que é bom e belo, estranhamos este “happy end”. Os mais cínicos verão no aplauso só a alegria dos inimigos, ao ver partir aquele que nunca venceram, ou com uma ironia mais refinada, descortinarão entre os “amigos” o alívio de quem vê livre o lugar que ele ocupou. Mas não pode ser só isso.
Não foi por acaso que, como nunca tinha acontecido na história dos trabalhistas ingleses, este homem venceu três eleições seguidas, a última das quais já depois da invasão do Iraque. Blair representa bem uma gesta de políticos que, contra todos os incómodos, assumem a sua missão de serviço ao bem comum. Destacam-se porque acreditam no que fazem e fazem porque acreditam. E isto faz a diferença. Estão longe de ser perfeitos, cometem erros e enganam-se, como aconteceu com este notável político com a opção injustificada da Guerra do Iraque. Mas mesmo no erro - reconhecido - não perdem a sua aura. Continuam a inspirar-nos confiança, apesar de tudo.
Há igualmente uma outra diferença assinalável. O sistema político inglês, mesmo com as suas falhas, mostra em muitas ocasiões uma fibra notável. A dignidade do aplauso final, na mesma sala onde semanalmente os deputados da oposição confrontaram duramente o primeiro-ministro durante uma década, revela uma qualidade política invejável. Eles fazem combate político como quem joga râguebi. É inspirador.
Em dez anos, Blair conseguiu, entre muitas outras coisas, que a economia do seu país tivesse um desenvolvimento notável, que a paz nascesse na Irlanda do Norte e que o Reino Unido se aproximasse da União Europeia. Saiu voluntariamente, deixando o seu país estável e equilibrado. Agora, segue-se outro desafio ainda mais difícil: ser co-construtor da paz no Médio Oriente, entre Israel e a Palestina. É uma boa notícia para Mundo que ele se dedique a essa missão.
Correio da Manhã, 4 Julho 2007
Parece uma história implausível, quase extraterrestre, tanto mais que não se trata de um elogio fúnebre. Mas assim aconteceu, na passada semana, com Blair, na sua despedida do Parlamento inglês. Ninguém lhe regateou os elogios que, na política, são escassos entre adversários. Quiseram fazê-lo de pé, numa ovação, para que não restassem dúvidas. O primeiro-ministro inglês, respondeu da mesma moeda, a todos – partiários e adversários - desejando o bem. Parece quase um retrato piegas, de filme cor-de-rosa. Tão habituados que estamos na política a não dar espaço nem crédito ao que é bom e belo, estranhamos este “happy end”. Os mais cínicos verão no aplauso só a alegria dos inimigos, ao ver partir aquele que nunca venceram, ou com uma ironia mais refinada, descortinarão entre os “amigos” o alívio de quem vê livre o lugar que ele ocupou. Mas não pode ser só isso.
Não foi por acaso que, como nunca tinha acontecido na história dos trabalhistas ingleses, este homem venceu três eleições seguidas, a última das quais já depois da invasão do Iraque. Blair representa bem uma gesta de políticos que, contra todos os incómodos, assumem a sua missão de serviço ao bem comum. Destacam-se porque acreditam no que fazem e fazem porque acreditam. E isto faz a diferença. Estão longe de ser perfeitos, cometem erros e enganam-se, como aconteceu com este notável político com a opção injustificada da Guerra do Iraque. Mas mesmo no erro - reconhecido - não perdem a sua aura. Continuam a inspirar-nos confiança, apesar de tudo.
Há igualmente uma outra diferença assinalável. O sistema político inglês, mesmo com as suas falhas, mostra em muitas ocasiões uma fibra notável. A dignidade do aplauso final, na mesma sala onde semanalmente os deputados da oposição confrontaram duramente o primeiro-ministro durante uma década, revela uma qualidade política invejável. Eles fazem combate político como quem joga râguebi. É inspirador.
Em dez anos, Blair conseguiu, entre muitas outras coisas, que a economia do seu país tivesse um desenvolvimento notável, que a paz nascesse na Irlanda do Norte e que o Reino Unido se aproximasse da União Europeia. Saiu voluntariamente, deixando o seu país estável e equilibrado. Agora, segue-se outro desafio ainda mais difícil: ser co-construtor da paz no Médio Oriente, entre Israel e a Palestina. É uma boa notícia para Mundo que ele se dedique a essa missão.
Correio da Manhã, 4 Julho 2007
Pela Europa
Desta forma – “Pela Europa” - quis Robert Schuman, um dos pais fundadores da União Europeia, definir a sua vocação determinada ao serviço de um novo futuro para os europeus, acabados de sair da IIª Guerra Mundial. Dessa semente, nasceram cinquenta anos de paz e de incomparável desenvolvimento económicos para os países membros. A poucos dias do início da presidência portuguesa da União Europeia, importa reafirmar essa determinação. Queremos continuar a lutar “pela Europa”. O nosso destino comum depende, porém, de sermos capazes de ultrapassar a crise e o cepticismo que se instalaram nos últimos anos, nomeadamente com o bloqueio a um novo modelo de organização da União.
Pelas voltas do destino, vai cair em plena presidência portuguesa o momento crucial da redacção e aprovação de um novo Tratado constitucional, depois do falhanço do anterior. Esse processo poderá constituir um momento histórico de relançamento do projecto europeu. Se contar com o empenhamento de todos os países membros, Portugal poderá desempenhar uma função catalizadora desse processo e abrir um novo horizonte de esperança. Essa função de negociação e de formulação de consensos vai exigir muito dos nossos governantes envolvidos nessa tarefa, mas pode constituir um notável serviço à causa europeia.
Mas esta Presidência não será exclusivamente marcada pela questão do Tratado. Já na próxima semana, pela primeira vez, vai realizar-se uma cimeira União Europeia/Brasil. Esta relação com um dos países em ascensão à escala global e com um papel central na América Latina, representa não só o cumprimento de uma estratégia de alargamento e reforço das relações externas da União Europeia, mas também o reforço da posição de Portugal no contexto europeu. Naturalmente, Portugal será, do lado da UE, a ponte privilegiada – mas não exclusiva – com o Brasil. Há que estar à altura.
Finalmente, nos grandes desafios para a presidência portuguesa da EU, sublinham-se outras duas cimeiras: com os países do Mediterrâneo (EUROMED) e com os países africanos (UE/África). No contexto do Mediterrâneo, joga-se uma das fronteiras essenciais do designado “choque de civilizações”, com o mundo islâmico. A cooperação entre a margem norte e a margem sul é essencial para contrariar a radicalização e o desenvolvimento de condições favoráveis para os jihadistas. Por outro lado, em relação a todo o continente africano, destaca-se como principal desafio o combate à pobreza e ao sub-desenvolvimento. Nesses processos, não podemos esquecer que a diferença de rendimento entre as duas margens do Mediterrâneo é de 1 para 15, e com os restantes países africanos de 1 para 30. O apoio ao desenvolvimento sustentável e à repartição de riqueza são resultados essenciais a saírem destas cimeiras. Por Portugal, nos próximos seis meses, vão passar as grandes discussões sobre o futuro não só da Europa, de uma larga faixa da humanidade. Queira Deus que seja um tempo de nova esperança.
Correio da Manhã, 27 Junho 2007
Pelas voltas do destino, vai cair em plena presidência portuguesa o momento crucial da redacção e aprovação de um novo Tratado constitucional, depois do falhanço do anterior. Esse processo poderá constituir um momento histórico de relançamento do projecto europeu. Se contar com o empenhamento de todos os países membros, Portugal poderá desempenhar uma função catalizadora desse processo e abrir um novo horizonte de esperança. Essa função de negociação e de formulação de consensos vai exigir muito dos nossos governantes envolvidos nessa tarefa, mas pode constituir um notável serviço à causa europeia.
Mas esta Presidência não será exclusivamente marcada pela questão do Tratado. Já na próxima semana, pela primeira vez, vai realizar-se uma cimeira União Europeia/Brasil. Esta relação com um dos países em ascensão à escala global e com um papel central na América Latina, representa não só o cumprimento de uma estratégia de alargamento e reforço das relações externas da União Europeia, mas também o reforço da posição de Portugal no contexto europeu. Naturalmente, Portugal será, do lado da UE, a ponte privilegiada – mas não exclusiva – com o Brasil. Há que estar à altura.
Finalmente, nos grandes desafios para a presidência portuguesa da EU, sublinham-se outras duas cimeiras: com os países do Mediterrâneo (EUROMED) e com os países africanos (UE/África). No contexto do Mediterrâneo, joga-se uma das fronteiras essenciais do designado “choque de civilizações”, com o mundo islâmico. A cooperação entre a margem norte e a margem sul é essencial para contrariar a radicalização e o desenvolvimento de condições favoráveis para os jihadistas. Por outro lado, em relação a todo o continente africano, destaca-se como principal desafio o combate à pobreza e ao sub-desenvolvimento. Nesses processos, não podemos esquecer que a diferença de rendimento entre as duas margens do Mediterrâneo é de 1 para 15, e com os restantes países africanos de 1 para 30. O apoio ao desenvolvimento sustentável e à repartição de riqueza são resultados essenciais a saírem destas cimeiras. Por Portugal, nos próximos seis meses, vão passar as grandes discussões sobre o futuro não só da Europa, de uma larga faixa da humanidade. Queira Deus que seja um tempo de nova esperança.
Correio da Manhã, 27 Junho 2007
Um voto útil
Os eleitores são cada vez menos fiéis ao voto no mesmo partido. Oscilam entre várias opções, consoante o líder que as protagoniza, a equipa que o acompanha e as principais ideias que defende. É um sinal dos tempos e, a meu ver, espelha uma atitude inteligente, que privilegia a liberdade de voto, escolhendo o que em cada momento parece ser a melhor solução, em detrimento de uma pré-determinação do voto, independentemente do candidato, da equipa e do programa.
Quando se aproxima uma eleição, como acontece agora com as intercalares para a Câmara de Lisboa, muitos eleitores entram neste processo. Qualquer que tenha sido a sua opção anterior, no que se refere ao partido que mereceu o voto nas últimas eleições, tudo volta a estar em aberto.
Deixando de lado as emoções, pensando exclusivamente em termos racionais, quais são, na minha perspectiva, as duas perguntas essenciais nesse processo de escolha? Primeiro, qual o candidato que, na sua vida política anterior, deu mais provas de capacidade de liderança, com determinação e inteligência, para enfrentar situações críticas, como a que vive Lisboa? Segundo, qual é a equipa mais consistente e com mais condições de se centrar nos problemas da cidade e de lhes responder com eficácia, apresentando para tal um programa credível?
Em Lisboa, a escolha é alargada. E, felizmente, com várias opções credíveis. Mas, na minha perspectiva, a escolha mais sensata só pode ser António Costa e a sua equipa. Indiscutivelmente é um político inteligente, determinado e com um perfil de liderança. Foi capaz de, em etapas anteriores, mostrar energia e espírito reformista, afrontando interesses e dificuldades de monta. É sério e tem ideias claras, não temendo decidir e executar as políticas que lhe parecem ser as mais adequadas. É um bom líder para Lisboa. Acresce que a equipa que escolheu é de muito boa qualidade. Rompendo as lógicas “aparelhisticas” redutoras, trouxe novos nomes, com credibilidade e experiência em vários sectores, que inspiram confiança.
O último elemento a considerar nesta escolha é a situação de emergência em que se encontra a Câmara Municipal de Lisboa. Em ruptura financeira e em crise anímica, Lisboa precisa de uma liderança forte. Ora, em virtude de uma bizarria do sistema eleitoral autárquico, quem ganha as eleições, pode não ter condições para governar a cidade. Pode ficar em minoria no executivo municipal e ficar na contingência dos acordos pós-eleitorais e das dificuldades que estes encerram.
Por isso, neste contexto, o voto de cada lisboeta deve ter em conta este factor. Deve ser um voto útil à boa governação da cidade. Assim, António Costa deve ganhar, com maioria absoluta, concentrando nele os votos de quem quer que Lisboa saia da crise. Se lhe foram dadas essas condições, daqui a dois anos cá estaremos para avaliar a sua governação da cidade. E voltar a escolher livremente o que então parecer melhor para a cidade.
Correio da Manhã, 20 Junho 2007
Quando se aproxima uma eleição, como acontece agora com as intercalares para a Câmara de Lisboa, muitos eleitores entram neste processo. Qualquer que tenha sido a sua opção anterior, no que se refere ao partido que mereceu o voto nas últimas eleições, tudo volta a estar em aberto.
Deixando de lado as emoções, pensando exclusivamente em termos racionais, quais são, na minha perspectiva, as duas perguntas essenciais nesse processo de escolha? Primeiro, qual o candidato que, na sua vida política anterior, deu mais provas de capacidade de liderança, com determinação e inteligência, para enfrentar situações críticas, como a que vive Lisboa? Segundo, qual é a equipa mais consistente e com mais condições de se centrar nos problemas da cidade e de lhes responder com eficácia, apresentando para tal um programa credível?
Em Lisboa, a escolha é alargada. E, felizmente, com várias opções credíveis. Mas, na minha perspectiva, a escolha mais sensata só pode ser António Costa e a sua equipa. Indiscutivelmente é um político inteligente, determinado e com um perfil de liderança. Foi capaz de, em etapas anteriores, mostrar energia e espírito reformista, afrontando interesses e dificuldades de monta. É sério e tem ideias claras, não temendo decidir e executar as políticas que lhe parecem ser as mais adequadas. É um bom líder para Lisboa. Acresce que a equipa que escolheu é de muito boa qualidade. Rompendo as lógicas “aparelhisticas” redutoras, trouxe novos nomes, com credibilidade e experiência em vários sectores, que inspiram confiança.
O último elemento a considerar nesta escolha é a situação de emergência em que se encontra a Câmara Municipal de Lisboa. Em ruptura financeira e em crise anímica, Lisboa precisa de uma liderança forte. Ora, em virtude de uma bizarria do sistema eleitoral autárquico, quem ganha as eleições, pode não ter condições para governar a cidade. Pode ficar em minoria no executivo municipal e ficar na contingência dos acordos pós-eleitorais e das dificuldades que estes encerram.
Por isso, neste contexto, o voto de cada lisboeta deve ter em conta este factor. Deve ser um voto útil à boa governação da cidade. Assim, António Costa deve ganhar, com maioria absoluta, concentrando nele os votos de quem quer que Lisboa saia da crise. Se lhe foram dadas essas condições, daqui a dois anos cá estaremos para avaliar a sua governação da cidade. E voltar a escolher livremente o que então parecer melhor para a cidade.
Correio da Manhã, 20 Junho 2007
Olho por olho
Quarenta anos sobre a “guerra dos seis dias”, em que Israel derrotou, num abrir e fechar de olhos, o Egipto, a Síria e a Jordânia, numa manobra de antecipação ao que parecia ser a preparação de um ataque destes países, a paz continua muito longe daquela terra martirizada. Mesmo com muitas outras vitórias importantes, Israel não obteve, desde então, o seu objectivo central. Continua ameaçado e sem descanso. Por seu lado, os palestinianos, mesmo depois de muitas derrotas humilhantes não desistem, não dão tréguas, nem serão derrotados. Nem para uns, nem para outros, a paz está no horizonte.
Neste período, muitas foram as tentativas de encontrar um caminho para o fim do conflito israelo-palestiniano, sem que o sucesso fosse além de uns escassos momentos. Depois, tudo regressava. Um pouco pior que antes, dado o efeito penalizador de mais uma decepção. Mesmo quando as lideranças dos dois lados se mostravam mais abertas e os acordos de paz mais consistentes, os radicais sempre conseguiram fazer explodir qualquer entendimento. Bastava provocar um atentado, para que se desencadeasse uma resposta violenta e o fim do acordo de paz.
Uma consequência deste processo, sempre marcado pela lei de talião, é metáfora antecipada por Gandhi: Olho por olho, o mundo acabará cego. Neste caso, perderão israelitas e palestinianos. Ninguém pode ganhar numa espiral de vingança. Por mais que isto seja evidente, ambas as partes teimam em seguir o caminho sem saída: atentado contra atentado, mortes pagas com mortes.
Deste círculo vicioso só haverá saída quando pelo menos uma das partes decidir não responder a uma agressão radical, recusando a reciprocidade da resposta, em benefício de um bem maior: a consolidação da paz negociada. Essa aparente fraqueza será uma força extraordinária na construção da paz e na libertação perante as armadilhas dos radicais inimigos. Paradoxalmente, estes só sobrevivem se forem alimentados com a vingança das suas vítimas.
Em alguns momentos da história tal solução esteve na raiz do sucesso de processos políticos complicados. Uma das mais recentes e impressionantes, foi a capacidade de não responder pela mesma moeda que tiveram os timorenses em 1999, antes do Referendo, quando diariamente eram provocados com mortes e ameaças. Se tivessem respondido, os defensores da independência teriam desencadeado uma nova guerra civil e o objectivo máximo – a realização do referendo - evaporar-se-ia. Sabendo conter a resposta, atingiram o seu objectivo, mesmo com sofrimento e vítimas.
Assim, caberá ao mais forte – Israel – ter a capacidade, na próxima volta da História em que existir um acordo de paz justo com a Autoridade Palestiniana, não responder “olho por olho...”, quando surgirem as provocações dos radicais. Só desta forma se passará o cabo das tormentas.
Correio da Manhã, 6 Junho 2007
Neste período, muitas foram as tentativas de encontrar um caminho para o fim do conflito israelo-palestiniano, sem que o sucesso fosse além de uns escassos momentos. Depois, tudo regressava. Um pouco pior que antes, dado o efeito penalizador de mais uma decepção. Mesmo quando as lideranças dos dois lados se mostravam mais abertas e os acordos de paz mais consistentes, os radicais sempre conseguiram fazer explodir qualquer entendimento. Bastava provocar um atentado, para que se desencadeasse uma resposta violenta e o fim do acordo de paz.
Uma consequência deste processo, sempre marcado pela lei de talião, é metáfora antecipada por Gandhi: Olho por olho, o mundo acabará cego. Neste caso, perderão israelitas e palestinianos. Ninguém pode ganhar numa espiral de vingança. Por mais que isto seja evidente, ambas as partes teimam em seguir o caminho sem saída: atentado contra atentado, mortes pagas com mortes.
Deste círculo vicioso só haverá saída quando pelo menos uma das partes decidir não responder a uma agressão radical, recusando a reciprocidade da resposta, em benefício de um bem maior: a consolidação da paz negociada. Essa aparente fraqueza será uma força extraordinária na construção da paz e na libertação perante as armadilhas dos radicais inimigos. Paradoxalmente, estes só sobrevivem se forem alimentados com a vingança das suas vítimas.
Em alguns momentos da história tal solução esteve na raiz do sucesso de processos políticos complicados. Uma das mais recentes e impressionantes, foi a capacidade de não responder pela mesma moeda que tiveram os timorenses em 1999, antes do Referendo, quando diariamente eram provocados com mortes e ameaças. Se tivessem respondido, os defensores da independência teriam desencadeado uma nova guerra civil e o objectivo máximo – a realização do referendo - evaporar-se-ia. Sabendo conter a resposta, atingiram o seu objectivo, mesmo com sofrimento e vítimas.
Assim, caberá ao mais forte – Israel – ter a capacidade, na próxima volta da História em que existir um acordo de paz justo com a Autoridade Palestiniana, não responder “olho por olho...”, quando surgirem as provocações dos radicais. Só desta forma se passará o cabo das tormentas.
Correio da Manhã, 6 Junho 2007
Livro e/ou Multimédia?
Em tempo de Feiras do Livro, vimos assistindo, em diferentes contextos, a discursos inflamados entre “conservadores” e “progressistas”, entre apologistas da leitura acima de tudo – e sem mais nada ...– e defensores, a todo o custo, das maravilhas quase miraculosas do multimédia interactivo. Esta já clássica e esperada contraposição entre os defensores acérrimos da cultura do livro contra os igualmente fanáticos do novo multimédia é uma discussão estéril e sem sentido.
Com efeito, argumentam os defensores radicais do livro que este estimula a análise estruturada das ideias, a imaginação despida de imagens pré e totalmente definidas e o prazer da viagem pelas histórias lidas serenamente. É verdade. Somam também o contributo da leitura para o domínio da língua, para a capacidade de apreciar a arte da narrativa ou a beleza da poesia. E concluem, na sua análise, que tudo o que afaste os cidadãos, particularmente as crianças e jovens, dos bons caminhos da leitura é obra dos demónios da modernidade.
Por outro lado, quem está na trincheira do multimédia puxa pelos argumentos da riqueza decorrente da utilização integrada de vários meios (texto, imagem, som), da força do pensamento em rede, da imensidão de informação disponível na Internet ou num DVD, da “adrenalina” de um jogo de computador. Também têm razão. Mas enganam-se quando deliciados com o “sucesso de mercado” destes novos suportes, aos quais as crianças aderem com grande entusiasmo, já antecipam no horizonte o “fim do livro”.
Este combate que supõe uma mútua exclusão – ou pelo menos, a clara e inequívoca sobreposição de um mundo ao outro - não se enquadra num tempo, que é o nosso, feito mais de “e” do que “ou”. Quem disse que estes meios são obrigatoriamente adversários? Porquê impor uma escolha difícil que não deve ser feita?
Importa olhar para a História. Se recuássemos alguns milénios até à invenção da escrita, ou somente uns séculos até ao tempo de Gutemberg, certamente assistiríamos a idêntica disputa entre os que se fixavam nas formas de comunicação preexistentes e os que se deixavam fascinar pelas novidades que o génio humano ia construindo. Essa disputa repetiu-se, evidentemente, nos novos confrontos com a rádio, com o cinema, ou, mais recentemente, com a televisão. Curiosamente, nenhuma destas sucessivas realidades eliminou a anterior. Apesar da normal perturbação que qualquer inovação provoca num ambiente estabilizado, o que podemos constatar é que estes vários meios se ajustaram, ganhando cada qual o seu espaço e sentido próprios, sem “abafar” todos os antecedentes. Mais: deixaram sempre espaço para que novas formas de comunicar fossem surgindo, acrescentando novos botões ao bouquet do conhecimento acessível.
É antigo o desejo de poder somar o melhor de vários mundos. Nem sempre isso é possível. Neste caso, parece não só possível, como indispensável. Essa será a conjunção de futuro.
Correio da Manhã, 30 Maio 2007
Com efeito, argumentam os defensores radicais do livro que este estimula a análise estruturada das ideias, a imaginação despida de imagens pré e totalmente definidas e o prazer da viagem pelas histórias lidas serenamente. É verdade. Somam também o contributo da leitura para o domínio da língua, para a capacidade de apreciar a arte da narrativa ou a beleza da poesia. E concluem, na sua análise, que tudo o que afaste os cidadãos, particularmente as crianças e jovens, dos bons caminhos da leitura é obra dos demónios da modernidade.
Por outro lado, quem está na trincheira do multimédia puxa pelos argumentos da riqueza decorrente da utilização integrada de vários meios (texto, imagem, som), da força do pensamento em rede, da imensidão de informação disponível na Internet ou num DVD, da “adrenalina” de um jogo de computador. Também têm razão. Mas enganam-se quando deliciados com o “sucesso de mercado” destes novos suportes, aos quais as crianças aderem com grande entusiasmo, já antecipam no horizonte o “fim do livro”.
Este combate que supõe uma mútua exclusão – ou pelo menos, a clara e inequívoca sobreposição de um mundo ao outro - não se enquadra num tempo, que é o nosso, feito mais de “e” do que “ou”. Quem disse que estes meios são obrigatoriamente adversários? Porquê impor uma escolha difícil que não deve ser feita?
Importa olhar para a História. Se recuássemos alguns milénios até à invenção da escrita, ou somente uns séculos até ao tempo de Gutemberg, certamente assistiríamos a idêntica disputa entre os que se fixavam nas formas de comunicação preexistentes e os que se deixavam fascinar pelas novidades que o génio humano ia construindo. Essa disputa repetiu-se, evidentemente, nos novos confrontos com a rádio, com o cinema, ou, mais recentemente, com a televisão. Curiosamente, nenhuma destas sucessivas realidades eliminou a anterior. Apesar da normal perturbação que qualquer inovação provoca num ambiente estabilizado, o que podemos constatar é que estes vários meios se ajustaram, ganhando cada qual o seu espaço e sentido próprios, sem “abafar” todos os antecedentes. Mais: deixaram sempre espaço para que novas formas de comunicar fossem surgindo, acrescentando novos botões ao bouquet do conhecimento acessível.
É antigo o desejo de poder somar o melhor de vários mundos. Nem sempre isso é possível. Neste caso, parece não só possível, como indispensável. Essa será a conjunção de futuro.
Correio da Manhã, 30 Maio 2007
Para além do ressentimento
Das forças que movimentam a História, o ressentimento não será das menores. O historiador francês Marc Ferro, a abrir o ciclo “Estado do Mundo” da Fundação Gulbekian, relembrava recentemente como muito do que vivemos se explica por este sentimento individual e colectivo, que atravessa séculos e continentes, enquanto força obscura, mas também como produto da História.
Fruto de derrotas, massacres e iniquidades, gera-se a humilhação, particularmente dolorosa para aqueles que passam de dominadores a escravos. É curioso, a este propósito, recuperar a sabedoria milenar chinesa, que defende que “uma vitória não deve ser grande demais”, evitando sempre que possível a humilhação do adversário. Mas raramente os vencedores não cedem à tentação de esmagar o vencido.
Da humilhação nasce o ressentimento, que perdura e impulsiona para o ajuste de contas, de que a vingança é o principal sub-produto. Torna-se um veneno que invade toda a existência. Só que, como dizia Shakespeare, guardar ressentimento “é tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. A vingança nunca é suficiente para o satisfazer. A obsessão vingativa que medra em ressentimentos antigos torna então o passado mais presente que o próprio presente. Dessa forma se explicam, segundo Ferro, quer a crise actual com os terroristas islamitas, quer outros fenómenos mais antigos, como a ascensão nazi depois da humilhação da Iª Guerra Mundial e do Tratado de Versailles, bem com a história de uma Polónia sucessivamente invadida e repartida por russos, alemães e suecos.
Mas Marc Ferro não ficou só nas tragédias que o ressentimento gerou ao longo da História. Trouxe também à memória, pelo menos, um milagre. Contra todas as expectativas, a longa história de humilhação que o apartheid havia produzido na África do Sul, com o consequente ressentimento de milhões de negros tratados com sub-humanos, não resultou numa explosão de vingança. E se ao historiador francês não sobrou tempo para aprofundar o porquê deste milagre, e nele encontrar uma chave de esperança para o Mundo, importa sublinhar que a paz só se poderá construir quando os ofendidos puderem e souberem transformar o seu ressentimento em perdão.
A dinâmica inspirada por Nelson Mandela, um dos homens mais notáveis de sempre, com o apoio de outros ilustres sul-africanos como o Bispo Desmond Tutu, transformou um potencial explosivo de ressentimento à espera de vingança em reconciliação e paz. Através da Comissão Verdade e Reconciliação, sem esquecer as humilhações, mas ao invés nomeando-as e condenando-as, valorizaram-se os factos, dignificaram-se as vítimas e refez-se a memória colectiva. Mas abriram-se também as portas ao perdão e à reconciliação, com o arrependimento do ofensor. Em defesa de um bem maior, diluíram-se os ressentimentos e deixou-se cair a vingança. Se a Humanidade souber fazer isso mais vezes, talvez encontre um futuro diferente.
Correio da Manhã, 23 Maio 2007
Fruto de derrotas, massacres e iniquidades, gera-se a humilhação, particularmente dolorosa para aqueles que passam de dominadores a escravos. É curioso, a este propósito, recuperar a sabedoria milenar chinesa, que defende que “uma vitória não deve ser grande demais”, evitando sempre que possível a humilhação do adversário. Mas raramente os vencedores não cedem à tentação de esmagar o vencido.
Da humilhação nasce o ressentimento, que perdura e impulsiona para o ajuste de contas, de que a vingança é o principal sub-produto. Torna-se um veneno que invade toda a existência. Só que, como dizia Shakespeare, guardar ressentimento “é tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. A vingança nunca é suficiente para o satisfazer. A obsessão vingativa que medra em ressentimentos antigos torna então o passado mais presente que o próprio presente. Dessa forma se explicam, segundo Ferro, quer a crise actual com os terroristas islamitas, quer outros fenómenos mais antigos, como a ascensão nazi depois da humilhação da Iª Guerra Mundial e do Tratado de Versailles, bem com a história de uma Polónia sucessivamente invadida e repartida por russos, alemães e suecos.
Mas Marc Ferro não ficou só nas tragédias que o ressentimento gerou ao longo da História. Trouxe também à memória, pelo menos, um milagre. Contra todas as expectativas, a longa história de humilhação que o apartheid havia produzido na África do Sul, com o consequente ressentimento de milhões de negros tratados com sub-humanos, não resultou numa explosão de vingança. E se ao historiador francês não sobrou tempo para aprofundar o porquê deste milagre, e nele encontrar uma chave de esperança para o Mundo, importa sublinhar que a paz só se poderá construir quando os ofendidos puderem e souberem transformar o seu ressentimento em perdão.
A dinâmica inspirada por Nelson Mandela, um dos homens mais notáveis de sempre, com o apoio de outros ilustres sul-africanos como o Bispo Desmond Tutu, transformou um potencial explosivo de ressentimento à espera de vingança em reconciliação e paz. Através da Comissão Verdade e Reconciliação, sem esquecer as humilhações, mas ao invés nomeando-as e condenando-as, valorizaram-se os factos, dignificaram-se as vítimas e refez-se a memória colectiva. Mas abriram-se também as portas ao perdão e à reconciliação, com o arrependimento do ofensor. Em defesa de um bem maior, diluíram-se os ressentimentos e deixou-se cair a vingança. Se a Humanidade souber fazer isso mais vezes, talvez encontre um futuro diferente.
Correio da Manhã, 23 Maio 2007
Amor e Ódio
No final da Iª Guerra Mundial, os soldados dos dois lados das trincheiras estavam tão perto, há tanto tempo, que já trocavam cigarros. Nessa altura, deixavam de estar aptos a combater. Ninguém mata quem fuma do mesmo maço de cigarro.
Perceber a natureza humana sempre se revelou um desafio impossível. Aqui “o número dos reais ultrapassa o número dos possíveis”. Somos sucessivamente surpreendidos por inesperadas manifestações que nem imaginávamos. De qualquer forma, é sempre útil regressar ao que se foi aprendendo sobre a essência do ser humano. Um dos contributos mais interessantes vem da Etologia, enquanto estudo da “biologia do comportamento”. Entre os seus autores, Eibl-Eibesfeldt (Amor e Ódio, Bertrand Editora) procura evidenciar traços de comportamento inatos e universais no ser humano, com paralelos significativos noutros seres vivos, com particular foco na agressividade.
O Homem, tal como os outros animais, está pré-programado para reagir naturalmente de uma forma agressiva, em determinadas circunstâncias. Mas reconhecendo essa realidade - e encontrando até algumas vantagens na sua adequada integração na vida humana - importa ter consciência que para viver pacificamente em sociedade, a agressividade tem de ser condicionada - e mesmo bloqueada - na sua transformação em agressão. E isso só acontece através da ligações sentimentais entre seres humanos. Aqui Eibesfeldt converge com Freud que defende que tudo aquilo que produz pontos comuns significativos entre os homens estimula sentimentos de comunidade, ou seja, de identificação. E esta inibe a agressividade.
Assim se explica que, por natureza, sejamos menos inibidos na agressividade para com desconhecidos. É curioso neste contexto o papel relevante do desenvolvimento das armas. Estas, quanto mais distantes operam, mais anulam os inibidores da agressividade, porque tornam mais anónimas as vitimas. Longe da vista, longe do coração.
No entanto, há uma esperança e um caminho. A tendência natural empurra-nos no sentido de tornar próximo o desconhecido. O autor sublinha que “a predisposição de estabelecer um laço de união com o próximo é na realidade tão grande que há sempre o “perigo” de dois grupos inimigos poderem estabelecer laços de amizade entre si, sempre que permaneçam muito tempo juntos”. Pelo contrário, diz Eibesfeldt, “a capacidade do homem rotular negativamente é, talvez, mais terrível que a própria descoberta das armas (..) O processo de transformar os adversários em seres odiados não consiste apenas em marcá-los como monstros mas também em despertar medo e desconfiança”. A capacidade de desumanizar o seu semelhante, torna possível eliminar as inibições da agressividade e conduzir também à eliminação da compaixão.
Entre o amor, que torna o estranho num próximo a quem não agredimos, e o ódio que desumaniza o “outro” e o torna por isso alvo preferencial da agressão, balança a nossa natureza. Com os resultados que se conhecem.
Correio da Manhã, 16 Maio 2007
Perceber a natureza humana sempre se revelou um desafio impossível. Aqui “o número dos reais ultrapassa o número dos possíveis”. Somos sucessivamente surpreendidos por inesperadas manifestações que nem imaginávamos. De qualquer forma, é sempre útil regressar ao que se foi aprendendo sobre a essência do ser humano. Um dos contributos mais interessantes vem da Etologia, enquanto estudo da “biologia do comportamento”. Entre os seus autores, Eibl-Eibesfeldt (Amor e Ódio, Bertrand Editora) procura evidenciar traços de comportamento inatos e universais no ser humano, com paralelos significativos noutros seres vivos, com particular foco na agressividade.
O Homem, tal como os outros animais, está pré-programado para reagir naturalmente de uma forma agressiva, em determinadas circunstâncias. Mas reconhecendo essa realidade - e encontrando até algumas vantagens na sua adequada integração na vida humana - importa ter consciência que para viver pacificamente em sociedade, a agressividade tem de ser condicionada - e mesmo bloqueada - na sua transformação em agressão. E isso só acontece através da ligações sentimentais entre seres humanos. Aqui Eibesfeldt converge com Freud que defende que tudo aquilo que produz pontos comuns significativos entre os homens estimula sentimentos de comunidade, ou seja, de identificação. E esta inibe a agressividade.
Assim se explica que, por natureza, sejamos menos inibidos na agressividade para com desconhecidos. É curioso neste contexto o papel relevante do desenvolvimento das armas. Estas, quanto mais distantes operam, mais anulam os inibidores da agressividade, porque tornam mais anónimas as vitimas. Longe da vista, longe do coração.
No entanto, há uma esperança e um caminho. A tendência natural empurra-nos no sentido de tornar próximo o desconhecido. O autor sublinha que “a predisposição de estabelecer um laço de união com o próximo é na realidade tão grande que há sempre o “perigo” de dois grupos inimigos poderem estabelecer laços de amizade entre si, sempre que permaneçam muito tempo juntos”. Pelo contrário, diz Eibesfeldt, “a capacidade do homem rotular negativamente é, talvez, mais terrível que a própria descoberta das armas (..) O processo de transformar os adversários em seres odiados não consiste apenas em marcá-los como monstros mas também em despertar medo e desconfiança”. A capacidade de desumanizar o seu semelhante, torna possível eliminar as inibições da agressividade e conduzir também à eliminação da compaixão.
Entre o amor, que torna o estranho num próximo a quem não agredimos, e o ódio que desumaniza o “outro” e o torna por isso alvo preferencial da agressão, balança a nossa natureza. Com os resultados que se conhecem.
Correio da Manhã, 16 Maio 2007
Começar de novo
Timor-Leste escolhe hoje o seu segundo Presidente da República. Depois de um ciclo que se encerra com muitas nuvens negras a pairar no horizonte, reflectindo meses de crise grave no primeiro país do século XXI, a esperança num novo tempo marca a expectativa dos mais optimistas.
A epopeia bem sucedida da sua libertação fez crer a alguns que Timor seria sempre uma uma história de sucesso. A concretização da última utopia do século passado, libertando um pequeno David das garras de um feroz Golias, assumia-se como garantia que todas as dificuldades nunca seriam suficientemente grandes para que não fossem ultrapassadas pela mesma vontade desse povo heróico. Ora essa expectativa foi ingénua e a realidade, com culpa de todos os protagonistas, tornou-se um pesadelo.
O fim da ocupação e do inimigo externo diluiu solidariedades internas. Enquanto na luta contra a Indonésia, todos se uniam - mesmo que se odiassem – agora, independentes e em democracia, as divisões vêm ao de cima. E, nestas circunstâncias, há muitas vezes a tentação política de substituir o inimigo externo por inimigos internos, para agregar novas solidariedades. Foi o que aconteceu, nomeadamente com a artificial divisão entre lorosaes e lorumonus, separando os timorenses conforme a sua origem do leste ou do oeste do país. A este processo não serão alheios interesses externos que, não sendo os únicos culpados, não deixam de ser preponderantes nestes desenvolvimentos. A definição das fronteiras marítimas de Timor, ainda em discussão e, com elas, o direito a estes recursos, não será estranha a esta crise. O petróleo e o gás natural nunca foram boa notícia para países frágeis.
Mas não devem os timorenses procurar fora desculpa para todos os erros. Não fora os erros políticos cometidos e nenhuma manobra de destabilização poderia ter sucesso. Resulta evidente, para quem conhece Timor, que o principal erro dos últimos anos decorre dum modelo de desenvolvimento que não assentou num efectivo combate à pobreza. A persistência de níveis de desemprego elevadíssimos, nomeadamente entre os jovens, a ausência de investimentos essenciais numa nova rede de infra-estruturas e a incapacidade de colocar a economia a funcionar foram os principais falhanços do poder timorense, protagonizado pela Fretilin. E todos os manuais de política são unânimes no resultado desse alinhamento que dá sempre turbulência, revolta e revolução. Para não fugir à regra, Timor comprovou que desemprego persistente mais pobreza aguda é sempre igual a convulsão social.
Com as eleições presidenciais e legislativas deste ano, Timor-Leste procura um recomeço que permita sarar as feridas recentes e abrir um horizonte de esperança. Só a vitória de Ramos Horta pode garantir as condições para que se comece de novo. Com a esperança de ter aprendido com os erros cometidos.
Correio da Manhã, 9 Maio 2007
A epopeia bem sucedida da sua libertação fez crer a alguns que Timor seria sempre uma uma história de sucesso. A concretização da última utopia do século passado, libertando um pequeno David das garras de um feroz Golias, assumia-se como garantia que todas as dificuldades nunca seriam suficientemente grandes para que não fossem ultrapassadas pela mesma vontade desse povo heróico. Ora essa expectativa foi ingénua e a realidade, com culpa de todos os protagonistas, tornou-se um pesadelo.
O fim da ocupação e do inimigo externo diluiu solidariedades internas. Enquanto na luta contra a Indonésia, todos se uniam - mesmo que se odiassem – agora, independentes e em democracia, as divisões vêm ao de cima. E, nestas circunstâncias, há muitas vezes a tentação política de substituir o inimigo externo por inimigos internos, para agregar novas solidariedades. Foi o que aconteceu, nomeadamente com a artificial divisão entre lorosaes e lorumonus, separando os timorenses conforme a sua origem do leste ou do oeste do país. A este processo não serão alheios interesses externos que, não sendo os únicos culpados, não deixam de ser preponderantes nestes desenvolvimentos. A definição das fronteiras marítimas de Timor, ainda em discussão e, com elas, o direito a estes recursos, não será estranha a esta crise. O petróleo e o gás natural nunca foram boa notícia para países frágeis.
Mas não devem os timorenses procurar fora desculpa para todos os erros. Não fora os erros políticos cometidos e nenhuma manobra de destabilização poderia ter sucesso. Resulta evidente, para quem conhece Timor, que o principal erro dos últimos anos decorre dum modelo de desenvolvimento que não assentou num efectivo combate à pobreza. A persistência de níveis de desemprego elevadíssimos, nomeadamente entre os jovens, a ausência de investimentos essenciais numa nova rede de infra-estruturas e a incapacidade de colocar a economia a funcionar foram os principais falhanços do poder timorense, protagonizado pela Fretilin. E todos os manuais de política são unânimes no resultado desse alinhamento que dá sempre turbulência, revolta e revolução. Para não fugir à regra, Timor comprovou que desemprego persistente mais pobreza aguda é sempre igual a convulsão social.
Com as eleições presidenciais e legislativas deste ano, Timor-Leste procura um recomeço que permita sarar as feridas recentes e abrir um horizonte de esperança. Só a vitória de Ramos Horta pode garantir as condições para que se comece de novo. Com a esperança de ter aprendido com os erros cometidos.
Correio da Manhã, 9 Maio 2007
03 maio 2007
Querer não é poder
O cartaz largo, à beira da estrada, anuncia com estrondo: “Compre o que quiser. Pague quando puder.” acrescentando que, para concretizar este passo de magia, basta pedir o cartão x. Simples...mas desastroso. Esta é, nos nossos dias, uma das maiores pragas da sociedade portuguesa, que se desdobra dos electrodomésticos às viagens, da casa ao carro, do computador à conta do supermercado.
Apesar de rimar, querer nem sempre é poder e, no consumo, confundir as duas coisas é terrível. Graças a uma enorme indústria de crédito ao consumo, dispondo de um marketing agressivo, multiplicaram-se as ofertas que, ilusoriamente, tornam possíveis opções que estariam fora das opções familiares. Tudo parece fácil. Basta pedir. O problema vem depois, quando se percebe que o passo foi maior do que as pernas.
Hoje, em vez de poupar, para eventualmente um dia gastar, gastamos a contar com o que - eventualmente - vamos ganhar. A diferença é óbvia e fruto da mentalidade do tempo. Atrás de facilidades, compramos problemas. Actualmente, milhares de famílias sentem na pele as suas opções insensatas do endividamento que fizeram. Os juros afundam-nas e, quantas vezes, sofrem a humilhação de verem os bens que adquiriram serem penhorados ou retomados pelo credor. Segundo o Banco de Portugal, o endividamento familiar corresponde a 84% do Produto Interno Bruto e, em 2006, o crédito concedido aumentou 11,5%, numa tendência persistente desde os anos 90. Outros dados apontam para que cada família tem, em média, seis créditos (não só na área do consumo, mas também no crédito à habitação e automóvel), e o seu endividamento corresponde a 120% do rendimento. Ou seja deve mais do que a totalidade do seu rendimento.
É urgente inverter este ciclo. Desde logo, pelo lado do consumidor. Quem entra no jogo do crédito fácil deve perceber os riscos que está a correr. Sabendo que quase nunca se destina a bens essenciais de consumo – longe vão os tempos do “fiado” na mercearia do bairro para poder dar jantar à família – as famílias têm de saber dizer não ao acessório que está para além das suas possibilidades efectivas. A solução seria simples e decorre do bom-senso. Primeiro é preciso poder, para depois concretizar o querer do consumo. Mas para isso é preciso não querer parecer mais do que se tem, nem ter mais do que se pode. Bem sei que são valores fora de moda. Mas ainda são os mais seguros e mais sólidos. Evitam grandes dissabores e dão particular sabor ao que se consegue. Por outro lado, é fundamental que as empresas que intervêm neste negócio sejam muito mais exigentes consigo próprias, na regulação ética e deontológica da sua actividade. O que equivale a ser muito mais selectivo na atribuição de crédito ao consumo e incomparavelmente mais sério na propaganda difundida.
Apesar de rimar, querer nem sempre é poder e, no consumo, confundir as duas coisas é terrível. Graças a uma enorme indústria de crédito ao consumo, dispondo de um marketing agressivo, multiplicaram-se as ofertas que, ilusoriamente, tornam possíveis opções que estariam fora das opções familiares. Tudo parece fácil. Basta pedir. O problema vem depois, quando se percebe que o passo foi maior do que as pernas.
Hoje, em vez de poupar, para eventualmente um dia gastar, gastamos a contar com o que - eventualmente - vamos ganhar. A diferença é óbvia e fruto da mentalidade do tempo. Atrás de facilidades, compramos problemas. Actualmente, milhares de famílias sentem na pele as suas opções insensatas do endividamento que fizeram. Os juros afundam-nas e, quantas vezes, sofrem a humilhação de verem os bens que adquiriram serem penhorados ou retomados pelo credor. Segundo o Banco de Portugal, o endividamento familiar corresponde a 84% do Produto Interno Bruto e, em 2006, o crédito concedido aumentou 11,5%, numa tendência persistente desde os anos 90. Outros dados apontam para que cada família tem, em média, seis créditos (não só na área do consumo, mas também no crédito à habitação e automóvel), e o seu endividamento corresponde a 120% do rendimento. Ou seja deve mais do que a totalidade do seu rendimento.
É urgente inverter este ciclo. Desde logo, pelo lado do consumidor. Quem entra no jogo do crédito fácil deve perceber os riscos que está a correr. Sabendo que quase nunca se destina a bens essenciais de consumo – longe vão os tempos do “fiado” na mercearia do bairro para poder dar jantar à família – as famílias têm de saber dizer não ao acessório que está para além das suas possibilidades efectivas. A solução seria simples e decorre do bom-senso. Primeiro é preciso poder, para depois concretizar o querer do consumo. Mas para isso é preciso não querer parecer mais do que se tem, nem ter mais do que se pode. Bem sei que são valores fora de moda. Mas ainda são os mais seguros e mais sólidos. Evitam grandes dissabores e dão particular sabor ao que se consegue. Por outro lado, é fundamental que as empresas que intervêm neste negócio sejam muito mais exigentes consigo próprias, na regulação ética e deontológica da sua actividade. O que equivale a ser muito mais selectivo na atribuição de crédito ao consumo e incomparavelmente mais sério na propaganda difundida.
Bem maior
Hoje, por cá, festeja-se a liberdade. A tal que só se dá por ela quando falta. Como o ar que respiramos. Banalizada, por vezes, através de um uso corriqueiro, outras tantas ocasiões confundida com aparências e simulações, torna-se moeda de pouco valor. Até pode parecer dispensável. Mas não é.
Não tenhamos dúvidas: se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, e concordando por uma vez com Sartre, o Homem nasceu para ser livre. Mas esse destino não é um simples equivalente da falta de constrangimentos ou da simples ausência de proibições. Nem um “ai que prazer / não cumprir um dever / ter um livro para ler / e não o fazer”. Ou o tudo poder fazer, sem limite, nem critério. Ser livre é ser escravo da consciência e senhor da vontade. E é pois entre consciência e vontade que devem ser geradas as nossas escolhas, expressões concretas da nossa liberdade.
Mas para ser livre é preciso ter escolhas possíveis. O problema é que, para muitos, as opções disponíveis são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, por vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas, graças a uma formação deficiente da sua consciência. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já antes fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade. São milhões os que ainda não são livres e, provavelmente, nunca o virão a ser. Vivem enclausurados pelas grades da pobreza, das dependências, da exclusão social e da desesperança.
Outros há que podendo ser livres, prefeririam não ter esse fardo da escolha. Passavam bem sem a liberdade. Têm um certo horror à responsabilidade de escolher. Sonham que alguém o fizesse por eles, deixando-os numa confortável posição de seguidores ou de detractores. Parecendo que não, esta posição tem o seu encanto. É ver o jogo sentado, em vez de arriscar a jogar. É ficar num lugar muito seguro. Cinzento, mas cómodo. Permite contornar a angústia da escolha e o peso das suas consequências. A procura de um Pai autoritário, que ciclicamente observamos, radica aqui.
Mas, na verdade, para quem quer assumir plenamente a sua humanidade e viver uma vida a cores, amar a liberdade é um desígnio irrecusável. É o que nos separa dos rastejantes. Mas não nos chega uma liberdade qualquer. Para quem quer viver a liberdade a sério, o grande desafio é, em cada escolha, não só escolher o bem em vez do mal. É querer ir mais longe. A liberdade mais perfeita é a que é capaz de, entre dois bens, escolher o bem maior. O mais universal e o mais urgente. Esta deveria ser a nossa maior ambição ao ser livres. Mas isto não é nada fácil.
Correio da Manhã, 25/4/2007
Não tenhamos dúvidas: se algo caracteriza o melhor da natureza humana é a sua ânsia de liberdade e a sede de auto-determinação. Com efeito, e concordando por uma vez com Sartre, o Homem nasceu para ser livre. Mas esse destino não é um simples equivalente da falta de constrangimentos ou da simples ausência de proibições. Nem um “ai que prazer / não cumprir um dever / ter um livro para ler / e não o fazer”. Ou o tudo poder fazer, sem limite, nem critério. Ser livre é ser escravo da consciência e senhor da vontade. E é pois entre consciência e vontade que devem ser geradas as nossas escolhas, expressões concretas da nossa liberdade.
Mas para ser livre é preciso ter escolhas possíveis. O problema é que, para muitos, as opções disponíveis são reduzidas e predominantemente más. Por outro lado, não dispõem, por vezes, dos instrumentos necessários para fazer as escolhas certas, graças a uma formação deficiente da sua consciência. Ou ainda, estão marcados pelo círculo vicioso de escolhas erradas que outros já antes fizeram e das quais herdam uma pesada factura. É então que se abrem a portas a diferentes escravidões que matam a liberdade. São milhões os que ainda não são livres e, provavelmente, nunca o virão a ser. Vivem enclausurados pelas grades da pobreza, das dependências, da exclusão social e da desesperança.
Outros há que podendo ser livres, prefeririam não ter esse fardo da escolha. Passavam bem sem a liberdade. Têm um certo horror à responsabilidade de escolher. Sonham que alguém o fizesse por eles, deixando-os numa confortável posição de seguidores ou de detractores. Parecendo que não, esta posição tem o seu encanto. É ver o jogo sentado, em vez de arriscar a jogar. É ficar num lugar muito seguro. Cinzento, mas cómodo. Permite contornar a angústia da escolha e o peso das suas consequências. A procura de um Pai autoritário, que ciclicamente observamos, radica aqui.
Mas, na verdade, para quem quer assumir plenamente a sua humanidade e viver uma vida a cores, amar a liberdade é um desígnio irrecusável. É o que nos separa dos rastejantes. Mas não nos chega uma liberdade qualquer. Para quem quer viver a liberdade a sério, o grande desafio é, em cada escolha, não só escolher o bem em vez do mal. É querer ir mais longe. A liberdade mais perfeita é a que é capaz de, entre dois bens, escolher o bem maior. O mais universal e o mais urgente. Esta deveria ser a nossa maior ambição ao ser livres. Mas isto não é nada fácil.
Correio da Manhã, 25/4/2007
18 abril 2007
O triângulo do fogo
Há cerca de quinhentos anos, estávamos nas vésperas de um dos acontecimentos mais negros na história de Lisboa. Em três dias – de 19 a 21 de Abril de 1506 – num movimento quase espontâneo, gerado por vozes fanáticas que exploraram um sentimento anti-semita pré-existente, libertaram-se demónios que chacinaram sem dó, nem piedade, duas a quatro mil pessoas. Suspeitas de permanecerem fiéis à tradição judaica, apesar de convertidos à força ao cristianismo (cristãos-novos), estas gentes foram trucidadas numa onda de loucura colectiva.
A propósito deste acontecimento é útil aprender com a História.
O populismo para arder necessita, tal como o fogo, de combustível, comburente e calor. Esses elementos constituintes do “triângulo” do fogo precisam estar presentes simultaneamente para que o incêndio ocorra. Façamos o paralelismo: nessa altura, o combustível era representado pelas condições sociais desfavoráveis de crise grave, induzida pela seca, com consequente fome, e agravada pela peste. Ontem, como hoje, o populismo só coloca multidões irracionais em movimento quando beneficia de um contexto de crise que lhe sirva de combustível. Sem ela, não arde. Por isso, sempre que se está perante crises de grande desemprego e pobreza alargada, todos os alertas devem estar monitorizados para este risco de “incêndio” social.
Mas a crise, por si só, não é suficiente. Precisa ainda de comburente. No século XVI, o contexto de anti-semitismo viabilizou a tragédia. Qual oxigénio para o incêndio social, o preconceito em relação ao “outro” – seja ele estrangeiro, judeu ou negro – é essencial para que a combustão se dê. A existência de índices elevados de xenofobia e de racismo, o desenvolvimento de diferentes expressões de choque de civilizações e o medo instilado face a hipotéticas ameaças protagonizadas por um “outro” que nos é apresentado como desumanizado, devem constituir outro eixo de alerta.
Finalmente, na metáfora do fogo, o papel dos que instigaram à selvajaria. Aparentemente dois protagonistas terão incendiado os lisboetas com apelos ao morticínio dos cristãos-novos. Quando perante elevadas cargas de combustível social – crise, desemprego, pobreza – e de comburente – diabolização de um qualquer “outro” – alguém lança uma chama, quase sempre se produz uma grande explosão. Foi isso que aconteceu, em 1506, na capital do reino e que custou a vida a milhares de pessoas. E que se pode reproduzir sempre que o triângulo do fogo social está completo. Por isso, vozes populistas, um pouco por toda a Europa, constituem um perigo sério enquanto incendiários sociais.
Ora, tal como na prevenção e combate ao fogo, urge uma atitude sensata de lutar contra a coexistência e potenciação destes três factores, no mesmo tempo/local. A prevenção faz-se, portanto, combatendo o preconceito que é comburente, a crise que é combustível e os argumentos dos incendiários. Antes que o incêndio comece.
Correio da Manhã, 18 Abril 2007
A propósito deste acontecimento é útil aprender com a História.
O populismo para arder necessita, tal como o fogo, de combustível, comburente e calor. Esses elementos constituintes do “triângulo” do fogo precisam estar presentes simultaneamente para que o incêndio ocorra. Façamos o paralelismo: nessa altura, o combustível era representado pelas condições sociais desfavoráveis de crise grave, induzida pela seca, com consequente fome, e agravada pela peste. Ontem, como hoje, o populismo só coloca multidões irracionais em movimento quando beneficia de um contexto de crise que lhe sirva de combustível. Sem ela, não arde. Por isso, sempre que se está perante crises de grande desemprego e pobreza alargada, todos os alertas devem estar monitorizados para este risco de “incêndio” social.
Mas a crise, por si só, não é suficiente. Precisa ainda de comburente. No século XVI, o contexto de anti-semitismo viabilizou a tragédia. Qual oxigénio para o incêndio social, o preconceito em relação ao “outro” – seja ele estrangeiro, judeu ou negro – é essencial para que a combustão se dê. A existência de índices elevados de xenofobia e de racismo, o desenvolvimento de diferentes expressões de choque de civilizações e o medo instilado face a hipotéticas ameaças protagonizadas por um “outro” que nos é apresentado como desumanizado, devem constituir outro eixo de alerta.
Finalmente, na metáfora do fogo, o papel dos que instigaram à selvajaria. Aparentemente dois protagonistas terão incendiado os lisboetas com apelos ao morticínio dos cristãos-novos. Quando perante elevadas cargas de combustível social – crise, desemprego, pobreza – e de comburente – diabolização de um qualquer “outro” – alguém lança uma chama, quase sempre se produz uma grande explosão. Foi isso que aconteceu, em 1506, na capital do reino e que custou a vida a milhares de pessoas. E que se pode reproduzir sempre que o triângulo do fogo social está completo. Por isso, vozes populistas, um pouco por toda a Europa, constituem um perigo sério enquanto incendiários sociais.
Ora, tal como na prevenção e combate ao fogo, urge uma atitude sensata de lutar contra a coexistência e potenciação destes três factores, no mesmo tempo/local. A prevenção faz-se, portanto, combatendo o preconceito que é comburente, a crise que é combustível e os argumentos dos incendiários. Antes que o incêndio comece.
Correio da Manhã, 18 Abril 2007
11 abril 2007
Dever e Gratidão
“Se servistes a Pátria e ela vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, e ela o que costuma.”
P. António Vieira
Um dos nossos maiores defeitos enquanto Povo é a ingratidão perante os que servem Portugal. Somos vezes de mais, nesse domínio, grosseiros e insensíveis. Não cuidamos de reconhecer e agradecer àqueles que serviram o Bem comum, desdenhando da sua competência, da sua intenção e da sua virtude. Escondemo-nos atrás do “não fizeram mais que a sua obrigação!” ou pior ainda “se o fizeram é porque tinham algum interesse”. Como sublinhava Flaubert “aos incapazes de gratidão nunca lhes faltam razões para não a ter”. E nós por costume, somos incapazes de dizer obrigado, tornando-nos assim seres vulgares e gente sem nobreza.
Note-se que ser grato, nada tem a ver com ser servil ou bajulador. Disso, infelizmente, temos de sobra. A gratidão exerce-se sobretudo quando já não é possível ao agradecido retribuir ou recompensar tal gesto. Quando não há risco de ter alguma coisa a receber. Quando o visado está na “mó de baixo” ou quando é vítima de ataques vários, entre os quais o do esquecimento.
Trago alguns exemplos para não ficar por generalidades. Não temos vergonha enquanto Povo, que Gaspar Castelo Branco, o mais alto dirigente público assassinado por terroristas das FP 25, em 1986, nunca tenha sido homenageado e condecorado pelo Estado português? Não temos coragem para corrigir a forma vergonhosa como nos portámos, enquanto País, no momento da sua morte? Ou não temos nenhum peso na consciência, por termos deixado que personalidades políticas e servidores do Estado que serviram Portugal com tudo o que tinham e sabiam, como Leonor Beleza ou Roberto Carneiro tivessem sido triturados por notícias e processos judiciais que se vieram a provar como injustificados? Não nos escandalizamos que, inúmeras vezes, quando um servidor do Estado, seja membro de força de segurança ou outro, morre em serviço, atribuamos aos seus dependentes uma mísera pensão, normalmente depois de meses eternos de espera? Que gente somos nós?
Mas se por um lado, esta constatação nos deve fazer corar de vergonha – e fazer-nos corrigir este defeito colectivo – por outro, em nada deve beliscar o nosso sentido de dever no serviço à Pátria. Porque mesmo que esta seja ingrata, servi-la, bem como à humanidade no seu todo, é um dever. Como diz Vieira, é “fazer o que devemos”. Da melhor forma que sabemos e podemos, sem esperar recompensa. Infelizmente, nos nossos dias, desvalorizamos esta noção de serviço ao bem comum e à causa pública. Privatizamos os nossos interesses e descuramos a construção colectiva da comunidade onde nos inserimos. Não damos exemplo, nem transmitimos aos nossos filhos a paixão pelo serviço a Portugal. Cultivamos mesmo um cepticismo cínico que goza com quem “estupidamente” segue esse caminho. Mas não tenhamos dúvidas: assim, cavamos a nossa vala comum.
Correio da Manhã, 11 de Abril
P. António Vieira
Um dos nossos maiores defeitos enquanto Povo é a ingratidão perante os que servem Portugal. Somos vezes de mais, nesse domínio, grosseiros e insensíveis. Não cuidamos de reconhecer e agradecer àqueles que serviram o Bem comum, desdenhando da sua competência, da sua intenção e da sua virtude. Escondemo-nos atrás do “não fizeram mais que a sua obrigação!” ou pior ainda “se o fizeram é porque tinham algum interesse”. Como sublinhava Flaubert “aos incapazes de gratidão nunca lhes faltam razões para não a ter”. E nós por costume, somos incapazes de dizer obrigado, tornando-nos assim seres vulgares e gente sem nobreza.
Note-se que ser grato, nada tem a ver com ser servil ou bajulador. Disso, infelizmente, temos de sobra. A gratidão exerce-se sobretudo quando já não é possível ao agradecido retribuir ou recompensar tal gesto. Quando não há risco de ter alguma coisa a receber. Quando o visado está na “mó de baixo” ou quando é vítima de ataques vários, entre os quais o do esquecimento.
Trago alguns exemplos para não ficar por generalidades. Não temos vergonha enquanto Povo, que Gaspar Castelo Branco, o mais alto dirigente público assassinado por terroristas das FP 25, em 1986, nunca tenha sido homenageado e condecorado pelo Estado português? Não temos coragem para corrigir a forma vergonhosa como nos portámos, enquanto País, no momento da sua morte? Ou não temos nenhum peso na consciência, por termos deixado que personalidades políticas e servidores do Estado que serviram Portugal com tudo o que tinham e sabiam, como Leonor Beleza ou Roberto Carneiro tivessem sido triturados por notícias e processos judiciais que se vieram a provar como injustificados? Não nos escandalizamos que, inúmeras vezes, quando um servidor do Estado, seja membro de força de segurança ou outro, morre em serviço, atribuamos aos seus dependentes uma mísera pensão, normalmente depois de meses eternos de espera? Que gente somos nós?
Mas se por um lado, esta constatação nos deve fazer corar de vergonha – e fazer-nos corrigir este defeito colectivo – por outro, em nada deve beliscar o nosso sentido de dever no serviço à Pátria. Porque mesmo que esta seja ingrata, servi-la, bem como à humanidade no seu todo, é um dever. Como diz Vieira, é “fazer o que devemos”. Da melhor forma que sabemos e podemos, sem esperar recompensa. Infelizmente, nos nossos dias, desvalorizamos esta noção de serviço ao bem comum e à causa pública. Privatizamos os nossos interesses e descuramos a construção colectiva da comunidade onde nos inserimos. Não damos exemplo, nem transmitimos aos nossos filhos a paixão pelo serviço a Portugal. Cultivamos mesmo um cepticismo cínico que goza com quem “estupidamente” segue esse caminho. Mas não tenhamos dúvidas: assim, cavamos a nossa vala comum.
Correio da Manhã, 11 de Abril
06 abril 2007
Lavar os pés?!!
Aproximam-se os dias mais sagrados do calendário cristão. A Páscoa, núcleo central da fé cristã, desdobra-se por toda uma semana que vai da aclamação na entrada em Jerusalém, até à “derrota” da crucificação que é ultrapassada pela glória da ressurreição, três dias depois. A este propósito e independentemente das convicções religiosas de cada um, mesmo para aqueles que nada têm a ver com o cristianismo, vale a pena rever a fascinante figura histórica de Jesus, nalguns dos seus traços essenciais.
Judeu de há dois mil anos, nascido em família humilde, ainda que da linhagem real de David, esta figura mudou a história da humanidade e, mais do que isso, continua a poder transformá-la significativamente. Entre tudo o que disse e fez, multiplicaram-se os paradoxos e os inesperados. Quase nada foi linear ou óbvio. Mas nessa surpreendente cascata de gestos e palavras, encontramos inspiração para o que poderia ser um mundo melhor. Independentemente de sermos cristãos.
Nesse contexto, situemo-nos, nestes dias, na descrição de uma das etapas finais – e centrais - da vida de Jesus. Depois de ter entrado em Jerusalém aclamado pelas multidões, Ele sabe o que o espera nos dias seguintes. As multidões mudam com excessiva facilidade e não há nada mais volátil que a fama. Nos bastidores, os poderes instalados temem-No e procuram, por todas as vias, derrotá-Lo. Antecipando tudo o que vai acontecer, reúne os Seus amigos e seguidores num jantar. Antes de o iniciar, para escândalo dos seus comensais – “Senhor, tu lavares-me os pés? Nunca!”, diz o seu amigo Pedro - pega numa bacia e numa toalha e começa a lavar os pés aos que estavam com Ele.
Ora no contexto da época, esse gesto era da responsabilidade dos servos humildes. Á chegada dos convidados lavavam-lhes os pés sujos e empoeirados do caminho, para que ficassem mais confortáveis. Mas nunca o senhor da casa fazia tal gesto. Como era então possível que Aquele que se anunciava como o Filho de Deus se humilhasse aos olhos dos seus contemporâneos? A razão é simples: quanto maior, mais servidor dos outros. Aí está a verdadeira grandeza. Mas também a provocação. Nas suas palavras, “ora se eu, sendo Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.”
Olhemos este desafio somente com os nossos olhos laicos, mesmo sem fé ou compromisso religioso.
Tal como naquele tempo, ainda hoje temos muita repugnância em aderir a esta inversão das nossas expectativas. Ambicionar o servir - e não o ser servido - como meta e expressão de plenitude muda tudo. Essa mensagem verdadeiramente revolucionária, poderia ser inspiradora para os nossos dias. Se cada um de nós, particularmente os que têm mais responsabilidade, onde quer que seja, procurasse acima de tudo servir humildemente, o mundo seria muito diferente. Mas nunca é tarde para começar.
Correio da Manhã, 4 Abril 2007
Judeu de há dois mil anos, nascido em família humilde, ainda que da linhagem real de David, esta figura mudou a história da humanidade e, mais do que isso, continua a poder transformá-la significativamente. Entre tudo o que disse e fez, multiplicaram-se os paradoxos e os inesperados. Quase nada foi linear ou óbvio. Mas nessa surpreendente cascata de gestos e palavras, encontramos inspiração para o que poderia ser um mundo melhor. Independentemente de sermos cristãos.
Nesse contexto, situemo-nos, nestes dias, na descrição de uma das etapas finais – e centrais - da vida de Jesus. Depois de ter entrado em Jerusalém aclamado pelas multidões, Ele sabe o que o espera nos dias seguintes. As multidões mudam com excessiva facilidade e não há nada mais volátil que a fama. Nos bastidores, os poderes instalados temem-No e procuram, por todas as vias, derrotá-Lo. Antecipando tudo o que vai acontecer, reúne os Seus amigos e seguidores num jantar. Antes de o iniciar, para escândalo dos seus comensais – “Senhor, tu lavares-me os pés? Nunca!”, diz o seu amigo Pedro - pega numa bacia e numa toalha e começa a lavar os pés aos que estavam com Ele.
Ora no contexto da época, esse gesto era da responsabilidade dos servos humildes. Á chegada dos convidados lavavam-lhes os pés sujos e empoeirados do caminho, para que ficassem mais confortáveis. Mas nunca o senhor da casa fazia tal gesto. Como era então possível que Aquele que se anunciava como o Filho de Deus se humilhasse aos olhos dos seus contemporâneos? A razão é simples: quanto maior, mais servidor dos outros. Aí está a verdadeira grandeza. Mas também a provocação. Nas suas palavras, “ora se eu, sendo Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.”
Olhemos este desafio somente com os nossos olhos laicos, mesmo sem fé ou compromisso religioso.
Tal como naquele tempo, ainda hoje temos muita repugnância em aderir a esta inversão das nossas expectativas. Ambicionar o servir - e não o ser servido - como meta e expressão de plenitude muda tudo. Essa mensagem verdadeiramente revolucionária, poderia ser inspiradora para os nossos dias. Se cada um de nós, particularmente os que têm mais responsabilidade, onde quer que seja, procurasse acima de tudo servir humildemente, o mundo seria muito diferente. Mas nunca é tarde para começar.
Correio da Manhã, 4 Abril 2007
01 abril 2007
Dispostos a dar?
Cinquenta anos de utopia construída é obra. Contra ventos e marés, cumpriu-se por estes dias meio século de existência do que hoje chamamos União Europeia. Apesar de não termos estado entre os seis fundadores, devemos festejar este momento histórico desta Europa a que pertencemos. Mas, em tempo de festa, é uma boa oportunidade para regressar às origens e actualizar o projecto, revivificando-o.
Porque é que nasceu a Europa?
É bom lembrar que a ideia de uma comunidade europeia surge no contexto de um continente em escombros, após a IIª Guerra mundial, ainda mais brutal que a primeira. Apesar de só indirectamente termos sentido os efeitos dessa catástrofe é importante não a esquecer, bem como ter presente que o risco da sua repetição nunca está definitivamente afastado. O melhor antídoto para evitar novos tempos sombrios é persistir na inspiração dos que, a partir de uma Europa dilacerada e dividida entre inimigos, ousaram pensar diferente.
Com efeito, os homens que lutaram por este sonho que se tornou realidade – Schuman, Adenauer, Monnet, entre outros – sabiam que a construção de um futuro de paz, num continente tradicionalmente devorado por guerras cíclicas, só seria possível num quadro de uma maior justiça e redistribuição solidária da riqueza. Mas também de interdependência e com um mercado comum, de livre circulação de bens, capitais e trabalhadores. E o mais extraordinário é que foram capazes de o fazer entre potências inimigas, saídas de uma guerra. Ao colocarem o seu futuro nas mãos uns dos outros, criaram condições para que ninguém fosse dispensável e que se tornasse inviável uma nova Guerra. Dizia Schuman: “A Europa unida prefigura a solidariedade universal do futuro..Estendemos a mão aos nossos inimigos, não apenas para nos reconciliarmos, mas para construirmos juntos a Europa do amanhã” Como resultado, tivemos cinquenta anos de paz e de um desenvolvimento extraordinário. Essa é a perspectiva fundadora do projecto europeu, com a qual se deve estar em sintonia absoluta. Por isso, para o nosso tempo é fundamental recuperar esta inspiração original da fundação da Comunidade Europeia, percebendo que é no repartir que está o ganho. Só teremos sucesso juntos.
Ora, entre nós, temos da União Europeia, tantas vezes, uma visão utilitarista e egoísta, de quem está sempre à espera de receber alguma coisa, nomeadamente, fundos comunitários. Discutimos muito pouco o que temos a dar. Evitamos pensar sobre o que podemos contribuir para que concretize o princípio de solidariedade com os mais pobres, que aguardam à porta da União a sua oportunidade de entrar. Mas essa é mesmo a questão fundamental: o que estamos dispostos a dar? Temo que a resposta possa ser “nada” ou “muito pouco”. Mas se assim o for, saibamos que estamos fora do espírito europeu.
Na comemoração do cinquentenário, numa ocasião histórica em que um Português, pela primeira vez, preside aos destinos da Comissão Europeia, é uma boa altura para reforçarmos a nossa pertença a este projecto, estando disponíveis para dar o melhor de nós, para continuar a construir um continente de paz.
Correio da Manhã, 28 de Março 2007
Porque é que nasceu a Europa?
É bom lembrar que a ideia de uma comunidade europeia surge no contexto de um continente em escombros, após a IIª Guerra mundial, ainda mais brutal que a primeira. Apesar de só indirectamente termos sentido os efeitos dessa catástrofe é importante não a esquecer, bem como ter presente que o risco da sua repetição nunca está definitivamente afastado. O melhor antídoto para evitar novos tempos sombrios é persistir na inspiração dos que, a partir de uma Europa dilacerada e dividida entre inimigos, ousaram pensar diferente.
Com efeito, os homens que lutaram por este sonho que se tornou realidade – Schuman, Adenauer, Monnet, entre outros – sabiam que a construção de um futuro de paz, num continente tradicionalmente devorado por guerras cíclicas, só seria possível num quadro de uma maior justiça e redistribuição solidária da riqueza. Mas também de interdependência e com um mercado comum, de livre circulação de bens, capitais e trabalhadores. E o mais extraordinário é que foram capazes de o fazer entre potências inimigas, saídas de uma guerra. Ao colocarem o seu futuro nas mãos uns dos outros, criaram condições para que ninguém fosse dispensável e que se tornasse inviável uma nova Guerra. Dizia Schuman: “A Europa unida prefigura a solidariedade universal do futuro..Estendemos a mão aos nossos inimigos, não apenas para nos reconciliarmos, mas para construirmos juntos a Europa do amanhã” Como resultado, tivemos cinquenta anos de paz e de um desenvolvimento extraordinário. Essa é a perspectiva fundadora do projecto europeu, com a qual se deve estar em sintonia absoluta. Por isso, para o nosso tempo é fundamental recuperar esta inspiração original da fundação da Comunidade Europeia, percebendo que é no repartir que está o ganho. Só teremos sucesso juntos.
Ora, entre nós, temos da União Europeia, tantas vezes, uma visão utilitarista e egoísta, de quem está sempre à espera de receber alguma coisa, nomeadamente, fundos comunitários. Discutimos muito pouco o que temos a dar. Evitamos pensar sobre o que podemos contribuir para que concretize o princípio de solidariedade com os mais pobres, que aguardam à porta da União a sua oportunidade de entrar. Mas essa é mesmo a questão fundamental: o que estamos dispostos a dar? Temo que a resposta possa ser “nada” ou “muito pouco”. Mas se assim o for, saibamos que estamos fora do espírito europeu.
Na comemoração do cinquentenário, numa ocasião histórica em que um Português, pela primeira vez, preside aos destinos da Comissão Europeia, é uma boa altura para reforçarmos a nossa pertença a este projecto, estando disponíveis para dar o melhor de nós, para continuar a construir um continente de paz.
Correio da Manhã, 28 de Março 2007
Subscrever:
Mensagens (Atom)